Construí um império

Eu construí um império

Com muito sucesso

Resido num paraíso

Tenho tudo em abundância

Satisfação, orgulho e ganância

 

Minha construção é vazia

meu trabalho é sem sentido

Ganho bem pra prejudicar 

quem não é meu amigo

e nem inimigo

 

Eu sorrindo sabendo

que quem sorri pra mim 

está sofrendo

Todo mundo mantendo

aparências sem fim

 

Sucumbi ao peso 

do que construí

O que vou legar?

Algo pra carregar?

 

Chega, parei aqui.

Isso vai ter fim.

 

Vou mudar o império

Isso é sério

Porque de velho

basta eu pra ranzinzar

 

Quem inova se arrisca

a andar numa pista

que se avista no ar

Mudança de corpo

Aquela senhora havia feito dezenas de plásticas no ano anterior. Durante uma vida toda teve um corpo desgrenhado, pois se estressou tanto com tudo que nem conseguiu olhar para o próprio corpo. Acumulou peles e pelancas, cabelos arrepiados e quebradiços, até o rosto ficou disforme. De repente, de uma hora para outra, começou a fazer muitas cirurgias plásticas. Recortou e reformou todo o corpo, tratou o cabelo. Estava irreconhecível, bonita, modernizada. 

Os cortes mais recentes ainda estavam cicatrizando quando anunciou algo que ninguém havia acreditado num primeiro momento: faria uma das mais recentes técnicas que a medicina, a física quântica e a energia nuclear haviam permitido ao ser humano desenvolver: a migração de corpo. 

Funciona assim – dizem que já há casos bem sucedidos – a pessoa sai do seu corpo e passa a habitar noutro corpo, de alguém que morreu recentemente. Entre seres humanos era relativamente fácil, mas também era possível com animais. E essa senhora havia decidido viver num corpo de galinha.

E o pior: o procedimento era irreversível. Ou seja, ela estava definitivamente descartando seu corpo para virar um frango.

Imagem de Pexels por Pixabay.

Ela pediu ao filho para levá-la até a clínica para fazer o procedimento. O rapaz sentia um misto de inconformidade e resignação. Resignou-se simplesmente por não poder fazer nada, tentou falar, argumentar, explicar, convencer… não importava o que ele falasse, sua mãe simplesmente não lhe dava ouvidos. Ele dizia que era o sonho dela, de que ela estava feliz…

Eu, amiga próxima da família, fui até a clínica para fazer companhia à senhora e ao filho. Tomei a liberdade de perguntar a ela porque ela escolheu uma galinha. Ela explicou que sempre gostou de galinhas e queria saber como é se sentir uma galinha. Ela falava feliz, olhando ao longe, como se enxergasse, acima e além da linha do horizonte, um outro mundo que nós não conseguimos acessar. Imaginei inicialmente que ficaríamos conversando para o tempo passar mais rápido, mas dito isso, um silêncio mortal se impôs.

Eu me perguntava se ela havia se dado conta de que não poderia mais falar, nunca mais se sentaria à mesa para uma refeição, começaria a comer insetos e minhocas, de que faria cocô por todos os lados… quem iria limpar? Ela iria viver em casa ou teriam que construir um galinheiro? 

O filho educadamente me informou, ainda que transparecendo vergonha e revolta, que eu poderia saber tudo sobre o andamento do procedimento pelos maiores sites de notícias e também pelo site da Sociedade Internacional de Pesquisas Médicas sobre Migração Corpórea.

Então chegou uma profissional para nos atender. Ela explicou que a migração demora alguns dias, que a senhora teria de ficar internada e seria monitorada dia e noite por sofisticada aparelhagem e dois profissionais especializadíssimos. Esse monitoramento tem dois objetivos: aumentar a segurança para a senhora e também registrar detalhadamente todo o processo para subsidiar novos estudos. A profissional explicou que aos poucos, ela passaria a sentir partes do seu corpo como uma galinha: sentiria um grande bico no rosto, perceberia o corpo mudando de forma e, por fim, sentiria vontade de bater asas. Os olhos da senhora brilhavam. Mas a moça explicou que existe algum risco de não funcionar, podem ocorrer idas e vindas, por exemplo, o procedimento poderia bloquear no finalzinho e, por algum motivo, ser necessário recomeçar. Existia ainda o risco de não ser possível finalizar e, nesse caso, se tudo desse certo, ela conseguiria voltar totalmente para o corpo antigo e seguir sua vida como antes. Ela afirmou que a equipe estava confiante que seria um sucesso e então, em três dias, a senhora teria o corpo do belo animal de seus sonhos. E, na pior das hipóteses, em no máximo uma semana a situação se resolveria.

O filho ouvia tudo em silêncio, imóvel, sem esboçar emoção – não esboçava nem sinal de vida, para falar a verdade. Ele estava morrendo por dentro.

Eu tinha mil perguntas, mas não me atrevi a fazer nenhuma. De repente, para mim, estava tudo tragicamente claro.