Reencontrar a mãe

Ela era bem pequenina, mas ainda lembrava do dia que sua mãe foi levada embora. Naquele dia, apareceram pessoas com uma longa túnica com capuz, vestiram sua mãe com uma túnica idêntica e os olhos da mãe passaram a olhar para baixo. Então ela foi levada para outra dimensão por um portal que logo se fechou. A filha queria reencontrá-la, mas tinha medo. 

No dia que completou um ano que a mãe tinha ido embora, a filha estava pensando na mãe, com saudade e, caminhando pela sala de casa, encontra uma túnica igual àquela que mãe usou. Cria coragem e veste a túnica. Imediatamente aparece o portal mágico e pessoas saem de lá para levá-la. De repente ela não quer mais ir e tenta tirar a túnica, mas não dá tempo e eles a levam mesmo assim. Ela passa pelo portal e lá adiante enxerga sua mãe. A mãe não a vê. A menina fica olhando para a mãe mas não tem coragem de se aproximar, a mãe parecia estranha com aquela túnica. 

A menina percebe que o portal vai se fechar. Se isso acontecer, ela vai ficar ali para sempre e se desespera. Decide sair, os outros não querem que ela saia, tentam impedi-la. Ela se debate, se solta e sai do portal no último instante. Assustada, jura nunca mais entrar no portal. Ao mesmo tempo, se sente emocionada por ter visto sua mãe novamente. Mesmo distante e tão estranha, já não parecia tão assustadora quanto no dia em que a levaram. 

O tempo passou e ela pensou em atrair a mãe para fora do portal, mas concluiu que era impossível. Então num momento de desespero decidiu encontrar a mãe novamente. Mas como? Não encontrou mais aquela túnica, ela simplesmente desapareceu. Com saudade, pensou: “mãe, eu quero ir contigo”. Então viu o portal aberto à sua frente – sem ela vestir nenhuma túnica! Com muito medo, entrou de novo no portal. Entrou devagar e, dessa vez, caminhou até perto de sua mãe. A mãe levantou os olhos e percebeu a presença da filha. Demonstrou surpresa, como se estivesse reconhecendo a menina, mas a pequena saiu correndo antes de o portal fechar. 

No dia seguinte, a menina se perdeu em seus pensamentos. Que loucura tudo aquilo que estava acontecendo, de repente parecia que encontrar sua mãe era a coisa que ela mais queria, mas não queria ficar presa naquele lugar… e sem encontrar solução, pensou apenas “mãe, sinto sua falta”… e o portal instantaneamente se abriu bem à sua frente. Ela até se assustou, mas a atração foi irresistível, entrou sem pensar, com certa confiança de que conseguiria sair. Logo viu sua mãe e se aproximou bastante dela até ficar a um metro de distância. A mãe a viu, ficou surpresa, tirou o capuz da túnica e sorriu. A filha pôde vê-la melhor e se abraçaram. Nesse momento, todos ao redor baixaram o capuz das túnicas e circularam as duas, felizes. 

A filha pediu para a mãe voltar para casa, mas a mãe respondeu que agora morava ali e não poderia voltar. A menina disse que então ela ficaria ali para sempre… a mãe disse que isso a deixaria triste. A menina entendeu que seria melhor voltar para sua vida, mas teria que se despedir… para sempre. Não havia muito tempo para dúvidas, o portal ia fechar. Nesse momento a mãe disse: espera! E tirou do bolso um pequeno colar, leve, com um pingente em formato de octaedro. Colocou o colar na menina – o pingente ficou pendurado no meio do peito. A mãe então falou: 

– Use isso sempre que quiser falar comigo. Esse pingente vai refletir todas as luzes, elas virão até mim e então eu vou falar com o seu coração. Se eu não responder na hora, não se preocupe, em algum momento vai perceber minha resposta. 

A filha ouviu tudo emocionada.

– Mas preste atenção: quando você crescer, jogue o colar fora, pois vai ser hora de decidir tudo sozinha. 

A menina abraçou ainda uma vez a mãe. 

– Te amo. 

– Eu também te amo.

Virou de costas e saiu do portal para nunca mais voltar. Levava o pingente no peito.

O homem solitário

Imagem de Felix Mittermeier por Pixabay

Era uma vez um homem que morava no alto de uma montanha muito distante. Ele tinha uma casinha pequenina e morava sozinho. Na sua casinha, tinha uma cozinha com um fogão, uma mesinha e uma cadeira; no quarto uma cama e um pequeno guarda-roupa com uma porta só. Na pequena sala, o homem confeccionava sapatos. Ele fazia sapatos e vendia no povoado ao pé do morro, chamado Reino do Vale Antigo. 

Um dia, apareceu alguém que bateu à sua porta. 

Toc toc toc!!

– Quem é? Perguntou o homem com sua voz forte. Ele não costumava receber visitas.

– Hã… Sou eu, seu novo amigo!

O homem tomou um susto. “Novo amigo, ora, não tenho amigos há muito e muitos anos”, pensou o homem, desconfiado.

Mas por educação, foi abrir a porta. E deu de cara com uma raposa.

– Quem é você?

– Eu sou Raposo. Estive andando por essa linda região, pensando em vir morar nessa montanha… vi esta tão linda casinha e imaginei que deveria morar alguém muito especial aqui.

E antes que o homem pudesse dizer qualquer coisa, o Raposo, que tinha uma fala fácil, continuou:

– Posso conhecer sua casa? Aliás, está na hora do chá! O senhor costuma tomar chá à tarde? Poderíamos tomar chá juntos…

O homem já achou isso um abuso da raposa. “Surgiu do nada, quer conhecer a casa e ainda ganhar um chá! Só falta pedir biscoitos.”

– A propósito, eu adoro biscoitos de polvilho com chá, o senhor já experimentou? Derrete na boca… disse o Raposo.

– Ah, já chega! – Disse o homem – Eu não costumo receber visitas.

– Ah mas que pena, eu só queria conhecer sua linda casinha, quem sabe poderia me hospedar uns dias, posso lhe fazer companhia, afinal, deve ser muito ruim viver tão sozinho num lugar tão isolado! Posso lhe falar sobre minhas viagens…

– Não, não, não.  A casa é muito pequena e só cabe uma pessoa – Disse o homem, com sua voz forte e firme.

– Ah…. suspirou o Raposo – Se é isso que você quer, tudo bem, eu entendo, eu sempre sou rejeitado e vivo sozinho…

– Fique bem senhor Raposo! 

E o homem já foi fechando a porta.

Pensou: “Que malandro esse tal Raposo! Quer vir morar na minha casa, comer e dormir às minhas custas! Tenho que tomar cuidado com esses espertalhões.”

O Raposo, por sua vez, saiu resmungando consigo mesmo: “Agrrr, aquele homenzinho até que não é tão bobo… mas vou arranjar um cantinho para aproveitar uma vida fácil…” e seguiu sua caminhada, sem rumo, sem partida nem chegada.

No Reino do Vale Antigo havia um rei que tinha dois filhos: o príncipe e a princesa. Um dia, os dois irmãos resolveram sair para uma cavalgada e decidiram ir até o topo da linda montanha que avistavam do Reino. Saíram sem falar para ninguém sua aventura, pois todos sempre diziam que a montanha era muito íngreme e era muito longe. 

Os dois irmãos já estavam no alto da montanha quando a princesa disse:

– Veja irmão, ali tem uma casinha!

O homem, na sua casa, já tinha até esquecido da visita do Raposo quando alguém bateu na porta.

Toc, toc, toc.

– Quem é? 

– É a princesa!

“Princesa?” Pensou o homem. “Deve ser outra raposa.” Abriu a porta mal humorado, pronto para mostrar toda a sua habilidade em não ser simpático… mas tomou um susto quando viu uma menina jovenzinha vestida como uma princesa.

– Desculpe por importuná-lo. Eu só gostaria de conhecer o morador desta linda casa. Meu nome é Liz.

– Hã, hum… é…olá Liz.

– Senhor… ?

– Ah, meu nome é José.

 Ele estava se recuperando da surpresa quando viu também o rapaz montado num cavalo.

– Prazer em conhecê-lo José. Eu e meu irmão saímos para andar a cavalo.

– Ah… sim. Não costumo receber visitas. 

– Não queríamos incomodar… Bem, já estávamos de saída.

– Não se preocupem, vocês são gentis e não estão incomodando. Foi um prazer conhecê-la, senhorita Liz. 

Já ia se virando e fechando a porta quando parou e se voltou para a princesa. 

– Senhorita Liz, só uma pergunta. Quando você chegou, disse que era uma princesa. De onde vocês vieram?

– Nós somos da Reino do Vale Antigo. 

– Ah, você vem do Vale Antigo. Eu nasci lá.

– Então o senhor conhece!

– Sim, inclusive já vendi um sapato para um funcionário do seu castelo.

– Então você deve conhecer meu pai, o rei Toni de Todos.

– Sim, conheço, foi meu colega de escola, mas isso faz muitos anos…

– Ah, que legal! Vou dizer para o meu pai que conheci um velho amigo dele! Meu pai conhece todo mundo mesmo!

– Seu pai não vai lembrar de mim, faz muitos anos.

– Meu pai lembra de todas as pessoas, ele gosta muito dos amigos, tenho certeza que vai se lembrar do senhor. Até mais, senhor José!

– Hã, tudo bem. Cuidem-se nessa estrada íngreme.

O homem fechou a porta se sentindo um pouco transtornado. Começou a lembrar de quando era criança, dos amigos, da família… da mãe. Sempre ficava triste quando lembrava da mãe, que partiu tão jovem quando ele ainda era bem pequeno. Zezinho, era como o chamavam quando era criança. 

De repente lembrou que, quando a mãe morreu, ele perdeu a vontade de viver. Lembrou de um dia que não quis ir brincar com os amigos, ao contrário, sentou-se numa pedra, na frente de casa, e ficou fantasiando na sua imaginação infantil. Imaginou que ele ia morar num outro lugar, longe de todos. Ele havia imaginado que estava longe, sozinho, e então encontrou sua mãe. Ela também tinha ido embora para longe ele conseguiu encontrá-la… Nesse momento José se perguntou como ele pode lembrar dessa história que ele imaginou  quando era ainda tão pequeno? 

Quando ainda era jovem, ele foi morar na montanha. Aos poucos ele foi deixando tudo para trás, parentes, amigos, lembranças. Ele havia aprendido a fazer sapatos, e seguiu fazendo isso durante toda a sua vida. Vivia isolado, só ia até o povoado a cada três meses para vender seus sapatos. Quando tinha o dinheiro suficiente, comprava seus mantimentos e voltava para casa, caminhando pela montanha. 

Depois da visita surpreendente da princesa, muitas memórias lhe vieram à tona. Por um momento viu-se rindo sozinho, lembrando de uma brincadeira com os colegas de escola. Mas hoje ele tinha muito medo de se encontrar com eles, pois não sabia se os antigos amigos lembravam dele. Desde pequeno, ele tinha a impressão de que não tinha lugar pra ele nas brincadeiras. Pensando nisso tudo, se sentiu triste e melancólico.

José estava entregue às velhas lembranças quando alguém bateu na porta.

Toc, toc, toc.

“Será a princesa de novo?” Pensou ele. Foi rapidamente abrir a porta e deu de cara com um lindo gato preto e branco. 

– Um gato? O homem acabou dizendo essas palavras, tamanho foi seu susto.

– Miaaau, boa tarde para você também, senhor José. O senhor precisa fazer uma viagem.

– Viagem? Não, só vou para o povoado daqui uns três meses.

– Não, não, nada disso. É uma viagem mais interessante. Miaaau. Eu tenho algo para você, me acompanhe.

E o gato, num salto ágil, saiu da frente da porta e pôs-se a caminhar ladeira abaixo, em meio às grandes pedras e muitas árvores. Quando José deu por si, estava  descendo a montanha, passando entre as pedras e seguindo o gato, que desviava agilmente dos obstáculos alguns metros à sua frente. “Que raios eu estou fazendo aqui?! Nem sei onde eu estou!” Assustou-se José, mas não conseguia parar de seguir aquele animal fantástico.

Chegaram enfim a uma planície com uma grama muito verde. Então o gato fez algo que José jamais imaginaria: o gato saltou num riozinho que havia no local. “Gato não tem medo de água?” José não entendeu nada, pois esse gato não tinha medo de água. “Me acompanhe, miaaau”. O gato nadava na água. Algo dizia para José que ele não devia ir… mas um outro impulso lhe jogava para frente e não conseguia controlar suas pernas, então caminhou até o rio e entrou na água fria. Quando ele entrou na água, formou-se um enorme redemoinho e ele entrou para o fundo da água, levado pelo redemoinho. Foi muito rápido, não pode se agarrar a nada, só conseguiu encher os pulmões e prender a respiração. De repente se sentiu lançado ao chão. Ele abriu os olhos e estava dentro de uma caverna. Ali podia respirar. Ouviu passos ao lado, era o gato correndo, atravessando a caverna. 

– Miaaau, me acompanhe.

Ele correu atrás do gato, não podia mais voltar para trás, só lhe restava seguir o gato. Estava todo molhado e com frio. Viu uma claridade forte vindo da entrada da caverna. Quando chegou, olhou para fora e viu que estava em cima de um penhasco muito alto, que se erguia sobre enormes paredões de pedra. José viu que conhecia aquele penhasco, olhou para baixo, para o lado esquerdo, sim lá embaixo estava o Reino do Vale Antigo. Ele até esqueceu do gato por um momento, ficou olhando o povoado, parecia tão pequenino visto de longe. 

Mas algo estranho aconteceu. Mesmo olhando de tão longe, como se tivesse olhos de águia, conseguiu ver a si mesmo criança, brincando com os amigos da escola! Era como se estivesse vendo o passado na sua frente. Enxergava os menores detalhes e a viola inteira ao mesmo tempo. José ficou olhando para o pequeno Zezinho. Ele era o mais pequeninho de todas as crianças, corria junto e parecia estar se divertindo muito. José sentiu muito carinho por aquele menininho. José lembrou-se de que no fundo, sempre sentia uma tristeza que sempre o acompanhava, não sabia por que… Mas olhando Zezinho correndo e brincando, percebeu que nessas horas ele estava totalmente feliz. José ainda notou algo mais: tantas vezes pensou que os amigos nem lembravam mais dele, que ninguém lhe dava importância… mas vendo Zezinho agora, percebeu que os amigos olhavam para ele, o chamavam, brincavam junto muito contentes. 

A brincadeira terminou e José observou o pequeno Zezinho voltando para casa. Agora ele andava cabisbaixo. Chegando em casa, viu sua mãezinha que estava muito doente, e ficou muito triste. José se lembrou que dia era esse: o dia que ela foi embora… não pode evitar uma lágrima de dor e saudade.

Desde esse dia, José não quis mais ter ninguém em sua vida, ele temia perder a todos que amasse, e não queria passar por aquilo de novo. 

Estava totalmente absorto em suas memórias quando ouviu sua mãe: “Oi Zezinho!” José viu Zezinho dentro da casa. “Está todo suado, pelo jeito correu bastante!”,“Sim mãe”, “Que bom! Me prometa que vai ser sempre assim, feliz, sua vida inteira! Eu adoro ver você brincando contente! Amo você.”

José ouviu essas palavras da mãe e se emocionou profundamente. Mas notou que Zezinho não ouvia, Zezinho estava sofrendo profundamente pressentindo que em breve não teria mais a mãe ali, assim, ao seu lado. Ele não queria perder sua mãe. Se ele pudesse ir no lugar dela! Ela ia morrer e ele ia continuar vivendo… Zezinho se sentia culpado, sentia que não tinha o direito de viver. Mas não podia morrer no lugar da mãe… o pequeno Zezinho sofria profundamente, sentia que não tinha o direito de ser feliz vendo sua mãe tão doente. 

Percebendo que seu filhinho estava triste, a mãe resolveu falar.

– Zezinho, logo eu vou partir, você já percebeu, não é? 

Ele fez que sim com a cabeça.

– Eu preciso ir. Você precisa aceitar isso para eu poder ir em paz. Você não pode vir comigo, nem pode ir no meu lugar. Agora eu entendo… a vida tem todas as possibilidades! Você tem a vida, então você tem tudo. Viva plenamente! Vai fazer isso por mim meu pequeno?

Zezinho só ouviu a primeira frase “logo vou partir…” e não ouviu mais nada. Quando sua mãe lhe pediu “Vai fazer isso por mim meu filho?” ficou com vergonha de perguntar “isso o quê?” e apenas acenou que sim com a cabeça. José só observava, muito emocionado.

– Me dê um abraço! Disse a mãe.

José ainda lembrava desse abraço tão amoroso. Foi a última vez que José abraçou alguém. 

Agora José entendeu o quanto a mãe o amava, e pensou no quanto ela ficaria triste se visse José infeliz, isolado, carregando aquela tristeza que ele não sabia de onde vinha… mas agora começava a entender… era saudade. 

Mas as palavras ecoavam nos seus ouvidos. Zezinho não tinha ouvido, mas José adulto ouviu e entendeu! “Você não pode vir comigo… Você precisa aceitar isso… a vida tem todas as possibilidades!…  Viva plenamente!… por mim meu filho!” 

José caiu de joelhos e chorou como nunca tinha feito antes. De tristeza, de saudade, de alívio por enfim entender.

Quando parou de chorar, abriu os olhos e estava sozinho, dentro da sua casinha! O gato havia desaparecido… Que mágica foi essa? Ficou um tanto transtornado, mas não tinha tempo de pensar nisso, pois tomou uma decisão naquele momento. 

 Vestiu a roupa que mais gostava de usar e saiu caminhando montanha abaixo, pela estrada. Foi até o Reino do Vale Antigo, visitou a princesa e seu pai – velho amigo, conversaram bastante depois de tantos anos, e riram lembrando das brincadeiras. Visitou vários parentes e amigos de infância, todos estavam com saudades dele depois de tantos anos e o receberam com muita alegria.

Decidiu construir uma casa no Reino do Vale Antigo. Desde então, sua vida foi cheia de amigos, alegria e criatividade. À noite, antes de dormir, sempre lembrava da mãe e dizia a ela, na sua imaginação: mãe querida, quanta falta você me fez… Sei que um dia também vou partir, mas por enquanto, vou ficar por aqui. E dormia tranquilo.

Agora ele desfrutava de todas as possibilidades da vida!