O peso da guerra e o preço da paz

Dois jovens viajavam lado a lado. No meio da viagem, conversando, descobriram que pensavam de maneira diametralmente oposta sobre o mundo Chegando ao final da viagem, se despediram, mas decidiram manter o contato e ver qual dos dois chegaria melhor ao final da vida e, assim, aquele que estivesse melhor demonstraria através dos próprios fatos que estava com a razão. Um terceiro, que ouvia a conversa e achou a ideia muito boa, se dispôs a avaliar no final.

Um deles amava a paz e evitava todo conflito. Ao perceber dissonâncias num ambiente, cuidava ao máximo para não se envolver em nada. Quando tinha oportunidade, tentava atuar de maneira conciliatória, mas muitas vezes suas opiniões nem eram ouvidas.

O outro não suportava algumas coisas que considerava muito erradas. Ao contrário do primeiro, se posicionava e se envolvia fortemente em muitas questões. Apesar de seus esforços para efetivamente apresentar soluções, muitas vezes suas opiniões, igualmente,  não eram ouvidas.

O primeiro desistiu de falar e silenciou. O segundo desistiu de falar e lutou.

No final da vida, os três se reuniram. O primeiro disse: 

– Me sinto triste e sozinho, passei a me sentir indiferente e não criei nada de importante, mas estou leve e tranquilo. 

O segundo disse: 

– Passei por cima de algumas pessoas no caminho, foi pesado e estou todo esfolado, mas consegui várias coisas pelas quais lutei, tenho vários amigos, isso tudo me dá satisfação. 

O terceiro disse: 

– Bem, então o vencedor fui eu. 

– Como assim? Disseram os outros dois.

– É que com o tempo eu consegui ouvir e entender a todos. E entendi que, de alguma maneira, cada um tinha um pouco de razão, mas na maioria das vezes, eu não conseguia fazer com que cada um entendesse o outro.

Os dois primeiros perguntaram: 

– Mas você silenciou ou lutou? E se lutou, de que lado? 

– Eu silenciei às vezes, outras vezes falei. Quando ficou pesado demais, humildemente larguei. Quando o motivo me parecia justo, corajosamente lutei. Acabei até mudando de lado, sem nunca ter certeza do que era melhor. No fundo, o que eu fiz não fez muita diferença. 

– Se não fez diferença, você também não deveria ser o vencedor.

Por fim, os três concluíram que a guerra tem peso e a paz tem um preço. E que a primeira ação deve ser a boa disposição para a comunicação.

Separação

Eu saí de casa, não faz nem uma semana. Vim morar com outra pessoa, estou conhecendo sua família e amigos. Também tem dois filhos pequenos, como eu. São todos pessoas ótimas, me identifico tanto, parece que encontrei, enfim, minha família.

Aqui é um pouco diferente, ainda estou me acostumando com outra rotina, outros hábitos, tenho que me enquadrar. Eu não conhecia muito bem sua vida. É uma família grande, reúnem amigos e viajam bastante, até de trailer. Banheiro de trailer é estranho, eles almoçam todos juntos, comem pouca salada e só arroz branco. E tem coisas que não sei explicar, o olhar, o dinamismo, a energia. Foi muito intenso, foi algo como me encontrar neles, tem algo aqui que me atrai demais, sei que esse é o meu lugar.

Eu nem sei bem como eu saí da minha casa, deixei meus filhos. E eu havia dito há poucos dias que sempre estaria com eles. 

Agora estou aqui. Sei que sentem falta de mim. Tenho certeza que o mais pequeno pede por mim e chora. Isso está me doendo muito mais do que eu podia imaginar. Às vezes parece que só quero largar tudo e voltar, abraçar meus filhos e dizer: voltei pra ficar. Mas com que cara… não, não iria me perdoar, nunca. Passo os dias sem conseguir aproveitar, sem me concentrar nem no trabalho. Penso nos filhos o tempo todo. Aqui já estão me achando uma pessoa estranha. Preciso ver meus filhos, ver se estão bem.

Hoje aconteceu um acidente aqui, alguém atingiu o carro estacionado, ficou bem danificado, ainda bem que ninguém estava dentro. Já estamos vendo o conserto, vai sair bem caro.

O dia a dia aqui é leve, é bom. Mas preciso simplesmente conviver com meus filhos, preciso acompanhar eles crescendo, não posso deixá-los. Nunca me preocupei tanto com eles. Nunca pensei que sentiria tanta falta. O que eu faço?

Um grande cavaleiro

Um jovem queria se tornar um grande cavaleiro, desses que tem armadura e espada e vencem grandes batalhas. Saiu de casa montando seu cavalo e seguiu os cavaleiros que iam para uma missão. Os cavaleiros explicaram que estavam indo para o centro de treinamento de cavaleiros, numa cidade distante. O jovem poderia ir junto com eles, mas teria que fazer algumas provas. Se ele passasse nas provas, ele seria admitido como um cavaleiro e poderia ficar com eles para fazer o treinamento. 

Eles precisavam passar por uma pequena cidade que ficava distante. Todos os cavaleiros tinham armadura e espada, mas o jovem foi apenas com suas roupas do corpo e seu cavalo. Andaram dias e dias e o jovem já estava se sentindo muito cansado, qando chegaram a uma pequena cidade. No dia anterior, houve uma grande enchente e a ponte da entrada da cidade estava destruída, foi levada pelas águas. Então os cavaleiros, na beira do rio, não tiveram dúvida: despiram suas armaduras e largaram as espadas, amarraram seus cavalos para pastarem a grama verde do local e se lançaram no rio, atravessando o rio nadando contra a correnteza. O líder foi o primeiro cavaleiro que pulou, e o último, foi o cavaleiro ancião. Antes de o ancião pular, ele olhou para o jovem e percebeu que o jovem estava com medo. Então, tirou do bolso um balão vazio, uma simples bexiga de festa de aniversário e, sem dizer nada, entregou ao jovem. Então o ancião se virou e seguiu atravessando o rio a nado.

O jovem se viu sozinho com aquele balão na mão. Pensou um pouco, encheu o balão de ar, segurou o balão com os dentes e entrou no rio. Ele sabia nadar um pouco, mas não muito bem. Nadou forte contra a correnteza e conseguiu chegar ao outro lado do rio. Toda vez que ele ficava cansado demais e começava a afundar, o balão, firme entre seus dentes, mantinha sua cabeça para fora da água. 

Chegando do outro lado do rio, todos os cavaleiros estavam olhando para ele e festejaram quando ele saiu da água. Ele ficou surpreso e contente com a recepção calorosa. O ancião se aproximou dele e disse: “muito bem meu jovem, você soube usar seu corpo com coragem e sua mente com habilidade”. O cavaleiro líder então disse: “Você está preparado para lançar seu corpo às lutas da vida de cavaleiro! E por isso vai receber uma proteção importante, você vai receber uma armadura.”

Todos os cavaleiros foram então recebidos com festa nas ruas da cidade, eles eram muito conhecidos. O líder designou um cavaleiro para que se dirigisse ao artesão da cidade em encomendasse logo uma armadura para o jovem. O cavaleiro voltou dizendo que a armadura levaria três dias para ficar pronta. O líder disse: Ótimo! Durante esses três dias então, teremos tempo de ajudar os moradores a reconstruir a ponte!

Trabalharam duro durante três dias. Quando terminaram, a armadura já tinha ficado pronta. E assim foram embora, agora atravessando a ponte. Agora o jovem tinha não apenas seu cavalo,  mas também uma armadura. E havia guardado no seu bolso o balão esvaziado, quase inteiro. 

Seguiram pela estrada até a próxima cidade.

Chegando já noite na cidade, dormiram numa pousada. No meio da noite, o cavaleiro escutou seu cavalo relinchando. Todos estavam dormindo, mas ele sabia que aquele relincho era do seu cavalo, ele conhecia muito bem seu grande amigo. Olhou com cuidado pela janela, sem acender a luz, e viu um ladrão tentando desamarrar seu cavalo. Então ele foi até a cozinha, pegou uma faca, vestiu rápido sua armadura, pegou o balão e saiu pelos fundos, rápido e silencioso. Caminhou bem junto da casa para não ser visto. Então parou do lado de um lampião que estava do lado de fora, colocou sua mão segurando a faca do lado do lampião, fazendo projetar uma grande sombra no chão, bem no caminho do ladrão, que já havia desamarrado o cavalo e ia caminhando, puxando-o consigo. E gritou com toda a força, fazendo uma voz bem grave: 

– Pare aí seu ladrão, veja o tamanho da minha espada! Tenho também explosivos! 

E bum! Estourou o balão e sem nem parar de gritar, completou:

– Largue o cavalo e fuja enquanto é tempo, ou lute comigo!

O ladrão tomou um susto! Largou o cavalo e saiu correndo.

O jovem foi lá, pegou seu cavalo, amarrou de volta no estábulo, entrou na casa, foi até a cozinha e guardou a faca. Despiu a armadura e dormiu. O que o jovem não sabia é que o cavaleiro ancião também tinha acordado com o relincho do cavalo e assistiu tudo pela janela.

Então de manhã, quando todos tomavam o café da manhã, o cavaleiro ancião contou aos demais cavaleiros o que havia acontecido e, olhando para o jovem, disse:

– Você foi muito inteligente quando fez uma simples faca parecer, na sombra, uma grande espada; foi corajoso ao gritar forte e ameaçar o ladrão;  também foi prudente, se mantendo escondido. 

O jovem sentiu-se reconhecido, estava muito contente. O ancião continuou.

– Justamente por saber equilibrar a coragem com a cautela  e a inteligência, mostrou que está pronto para receber a arma dos cavaleiros.

E o cavaleiro líder levantou-se e lhe entregou uma espada.

– Parabéns meu jovem! Mas lembre-se: ao empunhar a espada, lembre dos três pilares: a coragem, a prudência e a inteligência.

O jovem segurou a espada com emoção e sentiu-se muito vaidoso. Agora ele já tinha armadura e espada, já era praticamente um cavaleiro! Sentia-se parte do grupo, igual a todos os outros. Passou a se sentir um promissor cavaleiro, começou a acreditar que era questão de tempo para se tornar um dos maiores cavaleiros de todos os tempos! Não conseguia esconder sua vaidade,  e não percebeu que todos os cavaleiros estavam o observando cuidadosamente…

Saíram para a estrada, rumo à cidade onde ficava o centro de treinamento. O jovem já estava perguntando como era o treinamento, quantos dias ficariam lá, certo de que passaria pelas provas.

Mas antes de chegar ao final da viagem, os cavaleiros conversaram entre si, sem o jovem perceber, e decidiram aplicar-lhe um último teste.  

Já próximo da cidade, no final da tarde, decidiram dormir ao relento naquela noite e seguir viagem só de manhã. O jovem, que nunca emitiu opinião antes, tomou a liberdade de questionar o motivo dessa decisão, mas apenas disseram que já era muito tarde… Ele achou estranho, pois ainda havia sol. Mas viu que não adiantaria tentar convencê-los a seguir, eles estavam decididos a acampar.

Então, conforme já haviam combinado, todos os cavaleiros levantaram, silenciosamente, pegaram seus cavalos e seguiram viagem, deixando o jovem dormindo sozinho, recostado à sua mochila. Só o ancião ficou recostado atrás de uma árvore, e deixou seu cavalo escondido entre algumas árvores um pouco adiante. 

Quando o jovem acordou já havia clareado o dia, mas ele não viu mais ninguém. Achou estranho, pensou: agora que sou um deles, eles esqueceram de mim? E o pior é que ele nem sabia o caminho para chegar até o centro de treinamento. Vai ver, não queriam que ele fosse…

Se sentiu traído, esquecido, sem importância. Só viu o seu cavalo pastando ao lado. Foi até o seu cavalo, lhe fez um afago carinhoso, ofereceu-lhe um maço de capim fresco. Calmamente buscou sua mochila com sua armadura e espada e já ia subir no cavalo para, quem sabe, seguir a estrada e tentar encontrar os cavaleiros, pedir que lhe permitam fazer a prova no centro… quando viu o ancião se aproximando. 

– Parabéns meu jovem!  Num momento de solidão e dor, você não se entregou à tristeza nem demonstrou revolta. Você foi maior que a sua dor, voltou-se para o seu grande companheiro de jornada – seu cavalo! – e retribuiu-lhe a amizade e confiança com carinho e capim fresco. Um cavaleiro sozinho não pode ir longe. Nos momentos difíceis, o mais importante é a calma e a confiança dos amigos! Você mostrou que está pronto para ser um cavaleiro, e aqui está seu grande prêmio. 

O ancião tirou do bolso um velho livro bastante usado. 

– Este livro resume toda a grande sabedoria dos cavaleiros. Pode ficar com você, eu já decorei o livro todo. Você deve ler um pouco todos os dias e, ao final da vida, terá absorvido a sabedoria e nobreza dos cavaleiros.

O jovem tomou o livro e agradeceu. Dessa vez, não ficou envaidecido, nem envergonhado de ter sido deixado para trás. Apenas entendeu que se tratava de uma lição – uma de muitas que ainda virão. 

Guardou cuidadosamente o livro na sua mochila e ambos, o jovem e o ancião, subiram nos seus cavalos e seguiram rumo ao centro de treinamento de cavaleiros.

Mudança de corpo

Aquela senhora havia feito dezenas de plásticas no ano anterior. Durante uma vida toda teve um corpo desgrenhado, pois se estressou tanto com tudo que nem conseguiu olhar para o próprio corpo. Acumulou peles e pelancas, cabelos arrepiados e quebradiços, até o rosto ficou disforme. De repente, de uma hora para outra, começou a fazer muitas cirurgias plásticas. Recortou e reformou todo o corpo, tratou o cabelo. Estava irreconhecível, bonita, modernizada. 

Os cortes mais recentes ainda estavam cicatrizando quando anunciou algo que ninguém havia acreditado num primeiro momento: faria uma das mais recentes técnicas que a medicina, a física quântica e a energia nuclear haviam permitido ao ser humano desenvolver: a migração de corpo. 

Funciona assim – dizem que já há casos bem sucedidos – a pessoa sai do seu corpo e passa a habitar noutro corpo, de alguém que morreu recentemente. Entre seres humanos era relativamente fácil, mas também era possível com animais. E essa senhora havia decidido viver num corpo de galinha.

E o pior: o procedimento era irreversível. Ou seja, ela estava definitivamente descartando seu corpo para virar um frango.

Imagem de Pexels por Pixabay.

Ela pediu ao filho para levá-la até a clínica para fazer o procedimento. O rapaz sentia um misto de inconformidade e resignação. Resignou-se simplesmente por não poder fazer nada, tentou falar, argumentar, explicar, convencer… não importava o que ele falasse, sua mãe simplesmente não lhe dava ouvidos. Ele dizia que era o sonho dela, de que ela estava feliz…

Eu, amiga próxima da família, fui até a clínica para fazer companhia à senhora e ao filho. Tomei a liberdade de perguntar a ela porque ela escolheu uma galinha. Ela explicou que sempre gostou de galinhas e queria saber como é se sentir uma galinha. Ela falava feliz, olhando ao longe, como se enxergasse, acima e além da linha do horizonte, um outro mundo que nós não conseguimos acessar. Imaginei inicialmente que ficaríamos conversando para o tempo passar mais rápido, mas dito isso, um silêncio mortal se impôs.

Eu me perguntava se ela havia se dado conta de que não poderia mais falar, nunca mais se sentaria à mesa para uma refeição, começaria a comer insetos e minhocas, de que faria cocô por todos os lados… quem iria limpar? Ela iria viver em casa ou teriam que construir um galinheiro? 

O filho educadamente me informou, ainda que transparecendo vergonha e revolta, que eu poderia saber tudo sobre o andamento do procedimento pelos maiores sites de notícias e também pelo site da Sociedade Internacional de Pesquisas Médicas sobre Migração Corpórea.

Então chegou uma profissional para nos atender. Ela explicou que a migração demora alguns dias, que a senhora teria de ficar internada e seria monitorada dia e noite por sofisticada aparelhagem e dois profissionais especializadíssimos. Esse monitoramento tem dois objetivos: aumentar a segurança para a senhora e também registrar detalhadamente todo o processo para subsidiar novos estudos. A profissional explicou que aos poucos, ela passaria a sentir partes do seu corpo como uma galinha: sentiria um grande bico no rosto, perceberia o corpo mudando de forma e, por fim, sentiria vontade de bater asas. Os olhos da senhora brilhavam. Mas a moça explicou que existe algum risco de não funcionar, podem ocorrer idas e vindas, por exemplo, o procedimento poderia bloquear no finalzinho e, por algum motivo, ser necessário recomeçar. Existia ainda o risco de não ser possível finalizar e, nesse caso, se tudo desse certo, ela conseguiria voltar totalmente para o corpo antigo e seguir sua vida como antes. Ela afirmou que a equipe estava confiante que seria um sucesso e então, em três dias, a senhora teria o corpo do belo animal de seus sonhos. E, na pior das hipóteses, em no máximo uma semana a situação se resolveria.

O filho ouvia tudo em silêncio, imóvel, sem esboçar emoção – não esboçava nem sinal de vida, para falar a verdade. Ele estava morrendo por dentro.

Eu tinha mil perguntas, mas não me atrevi a fazer nenhuma. De repente, para mim, estava tudo tragicamente claro.

Oposição de ideologias

Depois de alguns anos, visitei a república onde morei quando era estudante. Será que ainda havia algum conhecido morando lá, ou todos já teriam concluído seus cursos?

Logo na entrada algo estava diferente. No amplo hall da casa, com pé direito alto e iluminação limitada por pequenas janelas antigas,  vi dois cartazes, um de cada lado do hall, o mais distantes possível um do outro. Num estava escrito: “precisamos das chaves e não podemos pagar”, e do outro lado, o cartaz dizia: “é injusto uns pagarem por todos”.

Enquanto eu estava parada, chegou um rapaz.

– Oi, tudo bem?

– Oi, eu disse. Eu morei aqui há alguns anos, vim visitar.

– Legal, fique à vontade, se precisar de alguma coisa é só falar. 

– Pode me explicar o que são esses cartazes?

– Ah, é a nova forma de fazer assembleias. 

Lembro de quando fazíamos assembleias, todos os moradores reunidos ali no hall, nas escadas, com inscrição para falar em ordem organizada e votação ao final.

– Como assim, cadê a assembleia?

– É que o pessoal evita se reunir porque sempre dá briga. A república está dividida, uns são totalmente miseráveis e outros são pobres. Mas os pobres conseguem se alimentar bem e sobram uns centavos no final do mês. Acontece que semana passada a fechadura da entrada estragou e tivemos de trocar a chave. Cada morador precisa de uma cópia nova, mas não temos dinheiro para fazer as cópias. Daí o grupo dos miseráveis, que chama o outro grupo de “rico”, exige que este pague as cópias de todos.

– Mas não daria para deixar sempre uma chave em casa e qualquer morador que estiver em casa abre a porta para os outros? 

– Não dá, os dois grupos não se falam, ninguém de um grupo abriria a porta para alguém do outro.

– Ah… e você de qual grupo é?

– Nenhum dos dois. Na realidade sou igual a todos, todo mundo aqui está na mesma, só eles que não veem isso. Eu entro quieto e saio calado…

– Mas você tem chave?

– Não, eu passo pela janela da cozinha, que não tem tranca.

Vida e morte

Faz dois anos, perdi uma perna num acidente de carro e tive complicações durante os seis meses que fiquei no hospital. Durante esse período, me transformei completamente, os músculos atrofiaram, desapareceu totalmente meu sex appeal – para mim, essa foi a pior coisa que aconteceu naquele momento.

Finalmente saí do hospital e depois de dois meses, o câncer havia consumido metade do meu fígado. Mais uma cirurgia, longo tempo no hospital. Confesso que eu já estava cansado de viver, mas fiquei feliz quando recebi alta, mesmo com o tratamento contínuo.

Depois, veio a Covid. Eu já havia passado por muitos tratamentos… mas a Covid me sufocava de uma maneira desesperadora. Fui entubado e – nem acredito – sobrevivi. Mas ainda vivo com constante falta de ar e fraqueza, faz dois meses.

Essa semana fiz novos exames, e hoje pela manhã os médicos me disseram que eu não farei mais cirurgias, que eu tenho menos de dois meses de vida e que meu fim vai ser sofrido, infelizmente.

Mas me deram um alento: eu posso pedir desde já a eutanásia. Se eu preferir esperar, posso pedir depois, quando a dor aumentar muito. Se eu quiser ainda essa semana, preciso confirmar até amanhã, pois eles precisam agendar horário para o procedimento. 

Meu mundo terminou de cair. Mas a ideia é tentadora. Junto com meu corpo, minha vida também se despedaçou. Dou-me conta do quanto fui ingênuo quando acreditei que seria recompensado por ser bom, ou castigado por ser ruim. Não tem nada a ver, tem um monte de gente ruim sortuda, e gente boa se dando mal. Minha família cuida de mim, mas sei que sou um peso. Sofrem por mim, mas sei que sofrem mais por ter que cuidar de mim. As pessoas me olham com pena ou repugnância. E o Deus amoroso, cadê? Nem o velho barbudo vingativo não existe, não existe nada disso. Se eu não sentisse alguma dor, eu diria que nem eu existo, às vezes penso que sou uma ilusão, preso numa matrix. Hoje não quero mais pensar em nada, estou exausto.

Hospital background photo created by mrsiraphol – www.freepik

Instantes depois, uma mulher alta, jovem e bonita chegou bem perto do seu rosto e disse: vem comigo. Ele não teve escolha, saiu caminhando atrás da mulher. Ela o levou por um corredor branco, depois entraram em um quarto branco no qual havia uma cama, com várias pessoas ao redor de uma maca. Chegou mais perto e viu um corpo sendo retalhado. Quando se aproximou, viu o seu próprio corpo sendo cortado. E ele ali do lado, olhando… mas não tinha nenhuma dor. Pelo contrário, sentia-se completamente leve e com uma alegria transbordante. Paradoxalmente, sentiu-se mais vivo do que nunca.

Acordou renovado, com uma irracional, inexplicável e inabalável paz e confiança no futuro.

Lembrou da oferta da eutanásia. Ligou para o hospital e disse: “Com corpo ou sem corpo, escolho a vida”.

Aventura e mistério na obra abandonada

E ele saltou com toda a força para chegar na outra borda, mas ao aterrissar, algo deu errado, e ele escorregou, e não havia onde segurar, e um frio arrepiante de medo e susto percorreu o corpo. Ele não estava preparado para aquele tombo.

Havia rememorado esse momento incontáveis vezes. Agora, estava naquele abismo.

Imagem de Артём Апухтин por Pixabay

Era uma cratera no chão, no meio daquela construção abandonada perto de sua casa, ele estava no meio daquela obra agora, para sempre? Já havia chamado, gritado, chorado. Parecia que ninguém podia ouvi-lo. E sua perna doendo e inchando cada vez mais, com diversos esfolados por todos os lados, que ainda doíam.

Dessa vez ele estava sozinho, nem o seu cachorro foi junto. Não havia ninguém para buscar ajuda. Gostaria de ter um celular, um drone. E se alguém felizmente o encontrasse ali, ainda era certo que ficaria de castigo por ter ido brincar na obra abandonada. Era uma bagunça de ferros e concretos pra todo lado, estava do mesmo jeito desde que ele era bem pequenininho. Ele nunca tinha entrado lá, só olhava da rua. 

O que poderia haver de tão terrível, além de um grande buraco para cair dentro? Seus pais faziam uma cara de horror quando ele pedia para ir olhar a obra. “Lá é muito perigoso”. Só diziam isso. Ele sentia que havia mais para ser dito, mas ninguém dizia.

Nesse momento, ele sentiu um leve tremor no chão. Que estranho, mini terremoto?

Então o chão e tudo começou a chacoalhar intensamente, a poeira levantou e pequenos pedregulhos caíram sobre ele. Num milésimo de segundo, abriu-se um buraco sob seu corpo e ele despencou, não deu nem tempo de sentir frio na barriga.

Poff! Imóvel, tentou olhar ao redor no meio da poeira. Estava vivo, sua perna continuava doendo, mas no mais, parecia bem. 

– Quem é o novato?

Ele tomou o maior susto da sua vida.

– Não sei… olha, é um garoto!

– O quê? Esses desgraçados não tem limites!! Estão contratando adolescentes?? Espero que pelo menos tenham pago o teu salário. Como é o teu nome?

Ficou paralisado. Havia uns dez homens em volta dele, com roupas e capacetes de obra, todos muito curiosos, e alguns pareciam um pouco machucados, assim como ele mesmo.

– Será que ele sabe falar? 

– Dá um tempo, ele tá com medo.

– Traz uma água pro menino.

– Não tem, eles não trocam aquele galão faz tempo, lembra?

– É mesmo.

– Ele está sem equipamento de segurança.

– Mas você é chato mesmo né!! Não vê que ninguém te ouve? Ninguém usa esse monte de máscara, capacete, trava-queda e blá blá blá…

– Se fizessem tudo certo a gente podia estar vivo seu idiota!

– KKKK ele já tá pirado!

– Ah ah! Carlos você é louco mesmo.

– Sou eu o louco?? Só vocês que não veem…

– Tá, parem, parem, deixem disso. Olhem a cara do menino, coitado, apavorado. E ele tá machucado. Menino, faz tempo que você tá aqui?

Ele conseguiu falar, tremendo:

– Não sei…

– É igual a nós, parece que faz anos, o tempo não passa. 

Então ele ouviu uma voz ao longe chamando seu nome:

– Joãoo!! Joãooo!!!

Ele disse: 

– Vocês ouviram isso? 

– Joããoooo!! 

– Eu ouvi! É o seu nome?

– Sim! Eu sou João!

– Ouviram o quê?

– Não ouvi nada.

– Chiu! Escuta!

João ouviu latidos de cães e novamente pessoas chamando seu nome. Tentou gritar, mas se sentia muito fraco. 

– Vieram procurar o menino. Vão resgatar a gente também! Estamos salvos! Ele tá aqui!! Nós estamos aquiii!!!

E todos começaram a gritar, numa euforia indescritível  – exceto aquele homem louco, que tinha dito que todos estão mortos. Nesse momento, com um sorriso, o louco se abaixou do lado de João e falou baixinho, para só João ouvir: 

– Quem sabe agora eles vão entender e vou conseguir tirar meus colegas daqui. Obrigado por ter vindo. Boa sorte, garoto!

E João sentiu lambidas no seu rosto. Um enorme cachorro marrom dava latidos altos e abanava muito o rabo comprido.

– Aqui, ele está aqui! Está vivo!!

E João sentiu que alguém falava com ele, mas não tinha forças para responder, só piscou os olhos e mexeu os dedos, como lhe pediram. E via seus novos amigos pedindo para serem levados, mas os bombeiros só prestavam atenção nele, João. Então uma médica com roupas brancas se aproximou deles e disse: 

– Vocês adultos, venham todos comigo.

João viu aqueles homens caminhando junto com a médica, e ficou feliz por eles.

No quarto do hospital, João finalmente pôde ver sua mãe e seu pai. Estavam tão felizes por ele estar vivo que nem xingaram. E resolveu perguntar pelos outros homens.

– Que homens? Você foi com algum amigo até a obra?

– Não mãe, aqueles homens que estavam morando na obra.

– Ah, tem mendigos morando lá?

– Não pai!! Eu estou falando daqueles dez trabalhadores da obra, um deles se chama Carlos, que manda todo mundo usar capacete e essas coisas.

João viu seu pai e sua mãe fazerem a mesma cara de horror que faziam quando João insistia para brincar na obra, mas dessa vez também ficaram pálidos. 

– Onde eles estão, eles acompanharam uma médica, vieram para este hospital?

– Hããã…. Provavelmente não…  disse o pai.

– Mas que bom que você está bem né filho! Logo você vai sair do hospital e então todos os seus amigos virão te visitar, estavam todos preocupados…

João nem ouviu o resto da frase. Não entendia porque ninguém nunca tinha falado daqueles homens da obra. Estava muito feliz porque agora eram todos seus amigos. Não perguntou mais nada e se resignou, afinal, nunca entendeu muito bem os adultos.

Vício

Um menino nasceu na terra do gelo. Era um lugar lindo, o sol formava luzes incríveis, a noite gélida exalava introspecção, beleza e mistério. Ali qualquer um se podia locomover mais rápido do que em qualquer outro lugar do mundo, pois havia muitos caminhos de gelo para esquiar e lagos congelados para patinar. Mas havia caminhos muito perigosos, por isso as crianças passavam muitos anos aprendendo a esquiar e conhecendo todos os caminhos naquela região.  As mães cuidavam para que a casa estivesse sempre aquecida, tinham de abastecer as fogueiras constantemente, afinal a família precisava sobreviver naquela região inóspita. Os pais levavam as crianças para patinar desde cedo, pois todos tinham que aprender, era preciso. 

Aconteceu que o pai desse menino morreu quando ele ainda era muito pequenino. Ali havia um costume: não se enterravam os mortos jovens; eles ficavam guardados numa caixa, congelados, nos fundo do quintal, durante algumas décadas antes de serem enterrados. 

A mãe do menino se desdobrava para manter a casa aquecida e também levar o menino para patinar. Ela não dava conta de fazer nenhuma das duas coisas direito, mas mesmo assim o menino foi crescendo. Aos 14 anos, era hora de começar a patinar e esquiar sozinho. Mas o menino não se sentia seguro, tinha muito medo de escorregar. Então, não podendo mais segurar na mão de ninguém, decidiu que encontraria algo grande para lhe apoiar, e lembrou da caixa nos fundos do quintal. Buscou a caixa, amarrou nela uma corda forte e passou a esquiar e patinar por todos os lados arrastando a pesada caixa. Ele sentia como se estivesse sempre segurando a mão de alguém. 

Ao mesmo tempo, cansava muito. Sem querer, às vezes atrapalhava e até machucava alguém com quem cruzava o caminho. Algumas vezes, a pesada caixa escorregava mais rápido do que sua pouca habilidade lhe permitia controlar, e ele sofreu alguns acidentes. Quando lhe perguntavam porque não largava dessa caixa, ele dizia que aquilo o ajudava. Algumas poucas vezes se aventurou a passear sem a caixa, mas sentia muito medo de escorregar perto dos precipícios. Sentia que a caixa o ancorava.

Um dia, alguém cruzou seu caminho com velocidade e ele perdeu o controle. Começou a escorregar. Alguém viu o movimento e gritou: freie os patins! Ele freou e conseguiu parar, mas a caixa não tinha freios e, deslizando com velocidade, o arrebatou e o arrastou para o precipício.

Uma mulher à altura

Ele encontrou a mulher dos seus sonhos, era o relacionamento perfeito. Linda, com um corpo absolutamente escultural, um bom humor incrível, parecia que ela lia seus pensamentos e sempre conseguia fazê-lo feliz. Finalmente ele encontrou alguém à sua altura. Ele até gostava de observar os olhares dos amigos, misto de admiração e inveja. Namoraram durante  alguns meses e decidiram morar juntos, sem formalidades. Foram imensamente felizes durante 2 anos.

Ela era vaidosa e investia na sua beleza extraordinária. Às vezes ela comprava coisas um pouco caras. Apesar de ela não trabalhar, ela tinha seu próprio dinheiro, pois havia recebido uma herança razoável do pai, segundo ela mesma contou. Um dia ela chegou em casa com um anel realmente caro. Ele conhecia joias, então tinha certeza que ela pagou uma pequena fortuna por aquele anel. Mas aquele anel… Ele perguntou e ela explicou:

– Este aqui? Ah, sim, ia te mostrar. Fui ao shopping só para dar uma volta, me alegrar um pouco, estava me sentindo sozinha… e quando passei em frente à vitrine, vi este anel e pensei: “Oh meu Deus! É perfeito! Foi feito para mim!” Não tenho palavras para dizer como eu me senti, toda minha solidão desapareceu, fiquei tão empolgada!! Não resisti: entrei e comprei! Foi um pouco caro… mas eu amei tanto!

Ele ficou contente ao ver a felicidade dela, e ao mesmo tempo ele se sentiu culpado por ela estar se sentindo sozinha. Talvez ele estivesse trabalhando demais. 

Ela apareceu com algumas compras extremamente caras, até mesmo para o padrão de vida elevado que tinham: roupas, perfumes, joias. 

Vou resolver isso! Pensou.

Ele se dedicou mais ao relacionamento. Saíram para jantar algumas vezes e fizeram algumas viagens curtas nos finais de semana. 

Numa sexta-feira, ele conseguiu liberar a tarde inteira, chegou em casa logo depois do almoço. Ela não estava, mas chegou logo em seguida. 

– Oi amor, você está aí?? Ah… que bom! 

E começou a falar rápido.

– Deixa eu tomar um banho, caminhei tanto, fui almoçar naquele restaurante que a gente foi uma vez, lembra…

Ele não ouvia mais nada, estava concentrado no cheiro do perfume masculino que adentrou com ela. Ele conhecia muitos perfumes, sabia até o nome do excelente perfume francês que ela exalava, tinha certeza. 

Rapidamente ela foi tomar banho e ele ficou sentindo aquele perfume inconfundível no ar. E ele realmente sentiu uma dor no peito: aquele perfume não era dele. Traição! Sentiu-se traído. Mas no fundo, quase não conseguia acreditar.

Não falou sobre o assunto. Naquele dia ela foi apaixonadamente amorosa e carinhosa. Naquela noite, ela o fez mais feliz do que nunca. Todas as suas desconfianças se diluíram: ela realmente o amava. Não havia dúvida.

Porém, ele não esquecia aquele perfume. Um dia ela saiu e ele decidiu mexer nas coisas dela. Encontrou debaixo do fundo de uma caixa de maquiagem, bem dobrada, uma certidão de casamento. Constavam ali três casamentos e três separações.. Ela havia dito que nunca casou pois nunca havia encontrado um amor verdadeiro. Ele ficou estarrecido. Seu mundo desabou.

Um dos ex-maridos era famoso, os outros dois ele pesquisou na internet. Todos pertenciam à alta sociedade – mais alta do que ele próprio. E a cada casamento ela mudava de nome. 

Sentiu um frio imenso na espinha: ele estava vivendo com uma golpista, uma incrível intérprete do papel de mulher perfeita. 

Nos dias seguintes, alegou excesso de trabalho na empresa, saia cedo e chegava tarde. Pelo olhar dela, ele percebeu que ela desconfiava de algo. Ela o olhava com olhos fixos de gata, hipnotizante, como se pudesse ler os pensamentos dele. Ele tentava aparentar naturalidade em tudo, mas ela sempre conseguia ser mais espontânea e criativa. Obviamente ele não encenava bem, e ela sabia disso. Mas, habilidosa, ela sempre entrava no jogo e fazia parecer que ele estava dominando a cena.

Um mês depois, ele estava exaurido. Um dia tomou coragem e falou tudo que ele sabia. Ele queria dar-lhe apenas algum dinheiro, mas ela queria o apartamento, e ela revelou ser a negociadora mais habilidosa e agressiva que ele já havia conhecido em toda a sua vida de executivo. Ela ameaçou inventar horrores sobre ele nas redes sociais e até na imprensa, e ainda arrematou: você sabe que a verdade é uma questão de ponto de vista, não é? 

Chegaram enfim a um acordo: ele depositou um bom valor em dinheiro na conta dela e transferiu para ela o carro, o seu carro, seu xodó, que custou uma fortuna. Ele tremia de raiva quando entregou o carro a ela, mas pensou: eu entrego os anéis para não perder os dedos. 

Ela entrou no carro e foi imediatamente ao shopping, visitar uma de suas lojas preferidas e comprou a sandália e a bolsa mais caras da loja. Sentia-se deslumbrada com a sandália cravejada de joias que acabara de comprar. Sentia que estava pisando nas nuvens, e foi para o apartamento do amante, que seria a partir desse dia, seu novo esposo.

O falastrão

– Bom dia querida!

– Bom dia.

– O que temos para o café? Hum omelete! Acertou, estou com fome.

– Eu também. 

– Há eu gosto assim, você sabe né? Um pouco torrado ao redor, mas macio por centro, assim meio grosso, pra ficar com essa textura…

Depois de vinte minutos falando, ele estava saindo.

–  Muito bem, o trabalho me espera, hoje vai ser um dia cheio, tenho metas importantes para hoje! Eu ia dizer pra você me desejar sorte, mas tenho certeza que nem precisarei! Hahaha. Tchau, até de noite!

– Tchau.

Todo dia era assim. Ele era o centro, ele falava, ele tinha todas as iniciativas para tudo. Quando o conheceu, ela se encantou com a personalidade dele, extrovertido e cheio de autoconfiança.

Ela era o contrário dele. Desde criança se sentia invisível. Às vezes queria ser vista; outras vezes, sentia uma vontade inexplicável de sumir, desaparecer de vez.

– Bom dia minha querida!

– Bom dia.

– Cheiro de torrada! Minha preferida! Eu sei que a mais tostada é a minha… só tem uma?

– É a sua.

– Você não vai comer?

– Estou sem apetite, me sinto fraca… faz tempo, na verdade…

– Há já sei! Então você precisa de um café da manhã mais reforçado! Nenhuma fraqueza resiste a uma omelete com torrada com queijo derretido…

Depois de vinte minutos falando, ele estava saindo.

– Tchau querida!

– Tchau.

Alguns dias depois…

– Bom dia querida!

– Bom dia.

– O que temos pro café hoje? Só pão e requeijão?

– Estou sem energia pra fazer nada. 

– Ah, tudo bem, descanse um pouco. Eu me viro com isso mesmo. Depois eu faço um almoço reforçado…

Pela primeira vez ela o interrompeu. 

– Preciso te contar algo importante…

– Ah, minha querida, por falar em importante, você é a coisa mais importante da minha vida, nada seria mais importante do que você, você sabe disso, não é?

– Sim, mas ontem fui ao médico…

– O Dr. José? Ah! Ele é incrível não é? Faz tempo que não vou lá. Da última vez ele me disse “a sua voz ainda vai ecoar por muito tempo, você está forte como um touro!!” Hahaha, ouviu isso? Forte como um touro!

– Não fui ao Dr. José, precisei de outra especialidade, na verdade…

– Agora que eu vi a hora, estou quase atrasado, se vir o Dr. José, mande lembranças! Tchau meu amor!

– Mas… tchau.

Alguns dias depois…

– Há, você ainda está na cama? Desculpe, vou me vestir com a luz apagada para deixar você dormir… você anda sonolenta hein? Talvez seria bom ir ao médico. O Dr. José é muito bom, lembra dele? Ah, desculpe, você está dormindo. Pode ficar aí, eu já encontrei minha roupa, não se preocupe comigo, eu vou tomar café naquela padaria da esquina, sabe qual? Lá, o café é quase tão bom quanto o seu. Tchau querida!

O dia passou rápido. À noite, quando ele voltou, estranhamente não tinha ninguém em casa. Em poucos minutos ouviu a campainha e foi atender.

– Sim!

– Olá, sou seu vizinho de apartamento…

– Sim, eu sei, já nos encontramos no elevador algumas vezes, não é? Em alguns dias quando eu saí em horário diferente encontrei o senhor, é que normalmente eu saio bem cedo…

– Tentamos contato com o senhor a tarde inteira…

– Ah, hoje passei o dia correndo, passei a tarde ocupado com três reuniões, foi uma loucura…

– Entendo, mas queria lhe falar sobre sua esposa.

– Ah, sim, ela é uma pessoa maravilhosa, mas sabe, vou lhe dizer uma coisa, em tantos anos de casados ela sempre estava em casa nesse horário e o senhor não vai acreditar, pela primeira vez chego em casa e ela não está! Sabe…

O vizinho interrompeu e falou alto.

– Ela foi encontrada morta em casa hoje e acabou de ser enterrada.

– O quê??

– Isso que o senhor ouviu, sinto muito falar dessa forma, é que eu estava tentando lhe dizer… 

– Mas como assim? Morrer assim de uma hora pra outra? Que tristeza!

– Na verdade ela estava doente há meses…

– Que tristeza! Mas e agora, quem vai morar comigo? Assim, de uma hora para outra, eu não estava preparado! 

Fez meio segundo de silêncio. E continuou de supetão.

– Sabe amigo, vou lhe contar um segredo: ela era a pessoa com quem eu mais gostava de conversar…

E o vizinho conseguiu se desvencilhar depois de dez minutos e dezoito olhadas discretas para o relógio.

Ele, o falastrão, entrou no seu apartamento. Sozinho.