O casal, a psicopedagoga e o engenheiro, tiram férias e vão visitar a mãe dele. Depois de duas horas de avião e mais duas horas de carro, chegaram para passar três dias na cidadezinha acolhedora. Mas, como sempre acontecia, começa uma crise entre o casal. Ela, como uma mãe com medo de perder o controle; ele, como um filho inseguro, ensimesmado.
O pai dele já havia morrido, fazia anos. Muitas vezes ele ficou pensando no pai e, na verdade, às vezes até se perguntou se seu pai já esteve realmente vivo alguma vez.
No terceiro dia, o casal decide fazer um breve passeio a sós, numa tentativa de melhorar o clima. Decidem ir a um café, mas na pequena cidade só encontram uma padaria numa esquina próxima, onde decidem tomar um café e comer algo. Estando os dois sozinhos, imediatamente iniciam os jogos usuais de manipulação do casal: ela, com olhar felino, língua falante, corpo desinibido. Ele, no entanto, ao contrário, não adotou a usual postura altiva. Ele realmente não estava bem. Olhava para baixo, não ouvia o que ela dizia.
Até que ela falou diretamente com ele, com tom de voz calmo e acolhedor de terapeuta, e mesmo assim ele não respondeu. Essa indiferença foi a gota d’água.
Ela então reagiu com voz agressiva dizendo: o que há com você? Era muito raro ela se alterar. Os atraentes olhos felinos se tornaram assustadores olhos leoninos. Ele, imóvel, apenas levantou o olhar, só para confirmar o que já sabia: ali havia uma fera.
Quando ele a conheceu, ele amou a energia da casa, a alegria. Era uma família com muitas mulheres, sua esposa tinha quatro irmãs, o pai era o único homem da casa. A primeira impressão que ele teve, ao conhecer a família dela, foi de uma casa cheia de vida, conversa, movimento, risadas – o contrário da casa dele, ele só tinha um irmão gêmeo, os dois viviam brigando, disputando desde a atenção da mãe até as melhores notas e as garotas mais bonitas. A mãe dela era trabalhadora, organizada, uma profissional admirável e ótima mãe. Mas não cuidava muito da aparência, do romance, e o marido regularmente buscava todo tipo de diversão fora de casa. Um bom pai certamente, mas um péssimo marido.
Sua esposa era uma das alunas mais bonitas daquela turma da faculdade de pedagogia – na opinião dele, era a mais bonita. E hoje em dia, na meia idade, ela continuava linda e atraente, mas naquele momento estava alterada.
– O que deu em você? Você nunca me deixa sem resposta!
– Você nunca se interessa realmente pelas minhas respostas.
Pela primeira vez, o olhar felino sempre certeiro ficou desnorteado. Ele se arrependeu por uns instantes por ter dito isso, mas durou pouco, logo se sentiu tranquilo e forte, como um adolescente que contou para a mãe que havia descoberto algum segredo.
Ela era o tipo de mulher que cuidava de tudo, sempre atendia da melhor maneira quem lhe pedisse qualquer ajuda – e quem não pedisse também. E aí estava o problema: ele estava cansado de tanta intervenção, se sentia controlado. Ela era gentil, generosa, amorosa, mas ele se sentia sufocado por tanta conversa, perguntas, explicações, relatos, opiniões, intromissões até em assuntos do seu trabalho. Muitas vezes, ele sentiu vontade de dizer: posso apenas assistir meu futebol em silêncio? Mas acabava ficando calado, não tinha certeza do efeito que essas palavras teriam sobre a sua perfumada flor.
Sim, ela era uma flor sensível. Tão ativa, dedicada, cheia de energia, mas ele percebia que ela cansava e não entendia porque ela não relaxava de vez em quando. Quando tinha um tempo livre, inventava algum tratamento pro cabelo e lá se ia uma tarde preciosa de final de semana no salão. Ou pior, no shopping fazendo compras, o pior programa do mundo para ele – e para o filho mais velho também, ele percebia.
Mas ele entendia a necessidade dela de cuidar da aparência. Ela era exuberante, certamente, mas além disso, ela tinha algum receio de que ele perdesse o interesse nela e começasse a fazer o que o pai dela fazia. Ele entendia isso, e fazia questão de tranquilizá-la, chamando-a de gata, de linda, e dizendo que a amava.
Ele realmente gostava quando ela se arrumava toda para ele. Com isso, ele se sentia especial, pois quando ele era criança, era apenas um dos gêmeos. Ele nunca foi ele mesmo, sempre foi um dos dois – e geralmente as pessoas não conseguiam distinguir quem era quem. Isso durou até a adolescência, quando começaram a usar roupas diferentes e mudaram os cortes de cabelo. Daí as disputas passaram a ser ferrenhas, algumas vezes os dois até partiram para a violência – o que nunca foi uma boa ideia, porque a mãe, exigente e rigorosa com a educação dos filhos, punia severamente. Uma vez ele ficou uma semana de castigo no quarto, só saía para ir à escola. Mas ele precisa reconhecer que daquela vez ele passou um pouco dos limites… o irmão precisou fazer pontos no queixo porque caiu numa quina depois de tomar um soco. Mas passada essa fase, depois que cada irmão escolheu a faculdade e a namorada, tudo ficou maravilhosamente bem entre os dois, como nos tempos de tenra infância.
Mas o relacionamento com os pais nunca ficou muito bem. Ele tinha muita mágoa do falecido pai, que nunca se interessou por nada que ele fazia. Nem quando ele ganhou o troféu de xadrez no torneio de escolas, o pai nem foi assistir à premiação. A mãe sim estava lá, até chorou de felicidade. A mãe se orgulhava dos filhos, ele sabia disso. Ele queria ter sucesso na vida não tanto por ele próprio, mas pela mãe. Amava muito sua mãe, ela sempre acreditou nos dois irmãos, fazia tudo por eles. Era exigente, é verdade, mas dava a vida pelos filhos. Ele tinha de retribuir de alguma maneira, e ter sucesso era como dizer: valeu a pena mãe, obrigado por tudo. No discurso de formatura, ele dedicou o diploma à mãe – não ao pai, só à mãe. Ele não merecia.
– Eu estou falando com você…
Nesse momento ele simplesmente não conseguia se concentrar no que ela falava, ela sempre falava tanto!
Lembrou da sua trajetória de sucesso, orgulho da mãe. Depois de formado, foi efetivado no estágio e passou a crescer dentro da empresa. Depois, mudou para outra construtora melhor ainda, onde permanecia até hoje como engenheiro chefe.
E o irmão também estava bem, o que deixava a mãe realizada por completo. Embora tenha passado por momentos difíceis, bem difíceis. O irmão cursou Administração e pouco tempo depois de formado decidiu se endividar para investir numa pequena loja. Mas dependeu do salário da cunhada por um tempo e teve até de pedir dinheiro emprestado na família para não falir. Mas o irmão deu a volta por cima e hoje sua rede de franquias cresce a cada ano. Recentemente expandiu o e-commerce.
– Desisto. As poucas vezes que viemos visitar sua mãe, sempre acontece isso. Por isso eu detesto vir para cá.
Isso o quê? Ele pensou, mas não se atreveu a perguntar.
– Vamos, as crianças devem estar preocupadas com nossa demora.
Ele levantou mecanicamente, não costumava discutir com ela, descobriu nos primeiros anos de casamento que é melhor concordar – ao menos com essas pequenas coisas do dia a dia.
Ela estava arrasada. Arrasada. Se cuidava tanto, cuidava dos filhos, da casa, da alimentação, organizava os horários de toda família para todos fazerem atividades físicas – claro, era ela que levava as crianças ao clube – cuidava de todas as tarefas, atividades, reuniões da escola das crianças… Ela cuidava de tudo – além de ser uma profissional muito reconhecida na sua área, todos elogiavam sua perspicácia e sensibilidade para ajudar a solucionar qualquer questão na escola onde trabalhava. Inclusive ela cuidava da roupa dele, lembrando-o de comprar camisas ou calças novas. Além disso, ela mesma cuidava para estar sempre impecável – roupa e perfume adequado para cada ocasião, cabelos bem tratados, corpo em boa forma…
Ela ficou revisando mentalmente tudo o que fazia para cuidar de sua família e de si mesma, há quinze anos. E pela primeira vez percebeu que estava exausta. Sentiu vontade de tirar a sandália salto médio adornada com pedraria e calçar um chinelinho. Sentiu vontade de fazer um rabo de cavalo no cabelo e vestir uma camiseta, para poder andar corcunda com a barriguinha relaxada. Que horror, o que está acontecendo comigo? Pensou. Não não, isso seria uma tragédia, seria o fim, nunca! E rapidamente jogou os ombros para trás, alinhou a coluna e retomou a postura bela de sempre.
Deu uma rápida olhada para o esposo. Ele caminhava do seu lado, absorto, completamente absorto em seus próprios pensamentos. Ela lutou contra o desânimo e a tristeza de, mais uma vez, perceber que a mulher que ele realmente amava, por quem ele daria a vida, não era ela e sim a mãe dele.
Chegando à casa da sogra, ela vestiu uma camiseta e um calçou um chinelo. Ele nem percebeu. Ela então observou-o, em silêncio, enquanto ele gentilmente consertava a portinha de um armário que estava emperrada – ele amava ferramentas, parafusos, cimento, tijolos, projetos complexos cheios de cálculos… vivia envolvido com tudo isso, fosse por trabalho ou simples lazer. Então por um momento, a visão dela ficou um pouco turva e foi como se ela visse que os dois irmãos eram os homens daquela casa, como se o pai nunca estivesse presente. Ele sempre falou que o pai não estava nem aí pra nada, que a mãe cuidava de tudo. Agora ela percebeu que até as escolhas profissionais deles refletiram as necessidades da família que eles tiveram que suprir: o esposo dela era o filho que fazia todos os consertos dentro de casa e ajudava a calcular o apertado orçamento – habilidoso em matemática, ainda era uma criança quando aprendeu sozinho cálculos de juros e porcentagem. O cunhado, ajudava a planejar como dariam a volta em momentos de crise financeira, acompanhava a mãe para fazer compras e, já adolescente, participava das renegociações de dívidas no banco. O primeiro, se tornou engenheiro; o segundo, administrador.
E por um momento ainda, seu coração doeu quando imaginou o que a sogra havia vivido. Uma família para sustentar, filhos para criar, um casamento falido. De repente ele entendeu porque a sogra não cuidava da aparência – e porque sua própria mãe também não cuidava: elas simplesmente cansaram. Como ela própria naquele momento, sentada em silêncio, de camiseta e chinelo.
Suspirou e, interiormente, agradeceu sua mãe e sua sogra por terem tido tanta força. E imediatamente percebeu também a força que aqueles homens tinham – seu esposo e seu cunhado – pois provavelmente abriram mão de alguns sonhos pessoais para serem os filhos de que a mãe precisava, para suprirem o papel de homens da casa. Ela sentiu a grandeza deles, sentiu o amor deles pela mãe. E pela primeira vez, não ficou com raiva, mas se solidarizou à dor daquela família que se virou sem a presença do pai. Assim como a mãe dela havia sofrido com um casamento falido… assim como ela própria manteve sozinha, até então, a imagem de um casamento perfeito.
Lembrou do pai. Um mulherengo fanfarrão. Não era um pai ruim, era amoroso com as filhas, mas assumia poucas responsabilidades em casa, deixando a mãe sobrecarregada. Como ele gastava muito, às vezes faltava dinheiro para pagar as contas, então a mãe, ela mesma e as irmãs davam um jeito – todas as irmãs começaram a trabalhar desde jovens. E lembrou que sua mãe dizia que ele sempre foi o queridinho da mamãe dele. Agora lhe ocorreu que talvez seu pai nunca tenha precisado assumir responsabilidades, como ela mesma e seu esposo tiveram de assumir desde jovens. Ele não era uma pessoa má, só era um irresponsável, imaturo. E sentiu certa tristeza, saudade, nostalgia.
E percebeu que todos têm suas dificuldades, carências, conflitos. Em todas as famílias, em todas as gerações. E olhou para seus filhos assistindo televisão na sala. Como eles viam a mãe e o pai? Certamente tinham críticas que ela e o esposo não estariam preparados para ouvir. As crianças e os jovens são muito perspicazes em suas percepções, ela via isso diariamente na escola.
Sentiu-se mais tranquila depois dessas reflexões. Então o esposo terminou o conserto e sentou-se ao seu lado.
– Trocou de roupa?
Ela nem acreditou que ele percebeu. Olhou para ele e respondeu:
– Sim, mas vou trocar de novo, estou a fim de usar algo mais bonito!
E foi se vestir da maneira que realmente gostava, linda e exuberante.