A violência a atacou

A violência a pegou de assalto, traiçoeira pelas costas, sem chance de defesa, de reação, a tirou do chão. Dor, tristeza, ela só queria cuidar e curar. Não deu tempo para nada, impossível entender o porquê. Impossível evitar. Se ela pudesse prever, não estaria lá. Agora só queria um colo quentinho, queria chorar mansinho. Está se acalmando, é só deixar passar. Alguém ainda gritou: Isso não pode ficar assim! Justiça! Vingança! E ela falou: conheço quem me atacou, era eu há trinta anos atrás.

Roubaram meu celular

Roubaram meu celular. Roubaram meu celular! Levantei daquele banco por uns instantes. Como é rápido, tanta gente, impossível, perdi. Estou desnorteada, caminhando entre tanta gente em quem não confio. Acho que sempre fui meio desconectada. No fundo, eu queria perder o celular, eu queria me desconectar, descansar, desligar. Agora admito isso pra mim mesma. Caminhando e pensando, subi esse morro e vejo muitos fervilhando lá embaixo. Perdi o chão, desconexão, estou flutuando. Sinto medo, não sei se é de voar alto demais, ou de aterrissar. Não, nem um nem outro. É de nunca mais me conectar.

Aborto

Hoje sonhei contigo, sonhei com a filha mais velha. Era uma alegria, tudo completo. A vida era diferente, mas era feliz. Havia mais movimento dentro de casa. 

Agora estou desejando fortemente ter você conosco. Por que teve que ser assim? Só queria ter você perto de mim, para eu poder te cuidar, ver crescer e depois dizer, vá viver! Siga adiante na vida! 

É incrível como posso te sentir. Eu sei que você existe, quando eu sonho, vivo essa realidade: você é a irmã mais velha.

Minha menina, sinto muito, naquela situação… foi impossível evitar. Foi assim, eu simplesmente não pude evitar. Sinto tanto… pudesse mudar a realidade, fazer você existir de verdade. Porque eu sei que você existe. Sinto muito, muito mesmo. Que saudade. Te amo.

O conserto

A mangueira quebrou. Não entrou mais água na máquina de lavar. Também não dava para consertar. Simplesmente não funcionou mais, parou. Então, eles foram até o jardim, cortaram um pedaço da mangueira de regar flores, só um pedaço. Encaixaram um engate e ajustaram a mangueira numa torneira junto da máquina. Assim, fizeram uma ponte de safena e tudo voltou a fluir.

Por via das dúvidas

Por via das dúvidas se chega a Duvidoso. Duvidoso é uma cidadezinha pequena com muitos caminhos. Suas ruazinhas, estreitas e com muitas curvas, levam pra todos os destinos. E sempre é possível escolher um novo rumo, pois as ruelas se entrelaçam, se cruzam e se abraçam, pois temem ficar sozinhas. Os duvidosos vão para todos os lados, perguntando preocupados para onde ir.

Para sair, tem uma única estradinha que leva à cidade vizinha, onde tem um grande pórtico escrito: Bem-vindo a Decidido!! Lá só é possível ir para frente, em grandes avenidas retas e não convergentes. Os decididos são independentes, conversam com pouca gente, ninguém lhes cruza a frente.

Um dia, um inventor que visitava a região, cansado dessa repetição, imaginou a cidade perfeita, e num papel branco desenhou linhas pretas – as avenidas decididas… e pontilhou por cima os volteios duvidosos. Era perfeito! Todos podiam ir para todo lado, com rumos claros à frente, tudo integrado.

Então, como era inteligente, vendeu seu projeto para um grande arquiteto, que construiu a cidade Planejada. Todos preferiram morar lá, a vida ficou criativa e movimentada, e Duvidoso e Decidido viraram museus arquetípicos.

O pai

O tio convenceu a mãe a deixar o menino ir com ele ao parque, com a condição de voltarem em uma hora. Foram de carro para o outro lado da cidade.

Chegaram. Entraram num restaurante simples, com cadeiras velhas e nenhuma decoração. Então caminharam até uma mesa onde havia um homem almoçando: 

– Olá, visita pra você! 

O homem virou o pescoço e olhou para o menino, para o tio, de novo para o menino, longamente. E falou: 

– Como está grande… é parecido comigo.

O tio se despediu e o homem se comprometeu a levar o menino para casa mais tarde. 

O homem telefonou para o patrão avisando que nessa tarde não iria trabalhar. Quando o menino disse que a mãe ficaria preocupada, o pai apenas disse: não se preocupe, ela vai ficar bem.

Foram a um parque, conversaram sobre a escola e diversos assuntos. O pai o ajudou a subir em todos os brinquedos e árvores, até as mais altas. Comprou um pastel quando o menino ficou com fome.

No final da tarde, disse que estava na hora de ir pra casa. O menino então tomou coragem e perguntou: 

– Pai, por que a mãe diz que você é ruim?

O pai o olhou sério, depois sorriu tranquilamente e disse: 

– É uma longa história… mas já passou e você não precisa ter medo de nada.

Quando chegaram em casa, a mãe apareceu na porta e tomou um baita susto. O pai falou, lá do portão de entrada: 

– Pode ficar tranquila, aqui só tem dois amigos homens: eu e o nosso filho.

O menino se sentiu muito bem ao ouvir que ele era um “homem”, assim como o pai. 

Dali em diante, o menino passou a visitar o pai todas as semanas. 

Ser oradora

Chegou a vez da menina, hoje ela teria a oportunidade de se apresentar, sabia que era boa oradora. Subiu ao palco e sabia o que dizer, mas estavam todos cansados, conversando. Que fazer? Dizer blá blá blá e sair? Fechou os olhos e olhou para cima. Antes, ela estava lá fora, enquanto todos no salão aplaudiam o último orador e conversavam durante o rápido intervalo. Lembrou-se do passarinho que havia tomado sua atenção por completo e sentiu-se leve. Viu surgir na sua mente um pássaro lindo, azul, gigantesco, quase do tamanho do teto do imenso salão, voando lá em cima em pequenos círculos e rodopios. E pensou: se eu pudesse mostrar esse pássaro para que todos prestem atenção na beleza do que tenho a dizer. Por falar em atenção, lembrou-se de que estava no palco, de olhos fechados e percebeu que alguns já riam e zombavam dela. Então, ela apenas falou com entusiasmo: “Que lindo! Azul e grandão!” E apontou para o teto sorrindo. A barulheira virou murmurinho, silenciando aos poucos. Ela abriu os olhos e todos olhavam para cima. E começou: “Agora vamos desenhar o impossível e criar a realidade…”

Guerra e Deus?

Fui soldado, matei muitos e meus amigos tombaram. Eu, porém, continuo de pé – não sei por que. Sempre acreditei em Deus, mas vi tanta coisa na guerra… Não rezei mais, não sei se Deus existe. Mas hoje de manhã foi incrível… minha cachorra deu à luz três filhotes lindos e adoráveis. Neste momento, quando olho para eles, sinto que existe algo divino no mundo. Se só houvesse paz e amor no mundo, eu não questionaria sobre Deus. Agora me passou pela cabeça que talvez a guerra seja um parto sofrido e sangrento. Que ideia! O que de bom pode estar nascendo? Se eu pudesse ver o futuro, eu seria tão inteligente quanto Deus.

Amor verdadeiro

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Enfim, aos 40 anos, ela desistiu de encontrar um amor verdadeiro. Corajosa, decidiu permanecer solteira, só se envolvendo em relacionamentos eventuais. Conversou pela internet, se aventurou, viajou, curtiu momentos incríveis. Eu o amo muito, pensou ela, mas vamos ficar juntos pelo tempo que ele quiser. Ele quis, tiveram um filho lindo e passaram 50 anos juntos.

Guerra

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Ele lutou como um homem, como só um bravo homem lutaria. Por seu país, por seus colegas, vestiu e honrou a farda militar. Foi o que me disse o comandante, um dos poucos sobreviventes do batalhão. Agradeci a condecoração e me retirei, sem cerimônia. Então senti que estava sendo seguido. Quando olhei para trás, vi o batalhão, quase completo, todos caminhavam em minha direção me olhando. Paralisei. Dentre tantos, o reconheci, ele continuou caminhando, parou na minha frente e entregou-me uma folha de papel. “Por favor, entregue para ela”. Prometi que entregaria. Estava escrito: Sinto muito… Quero que saiba que estou bem, junto de meus companheiros. Gostei do nome que você escolheu, cuide bem do nosso pequenino. Te amo.