Mudança de corpo

Aquela senhora havia feito dezenas de plásticas no ano anterior. Durante uma vida toda teve um corpo desgrenhado, pois se estressou tanto com tudo que nem conseguiu olhar para o próprio corpo. Acumulou peles e pelancas, cabelos arrepiados e quebradiços, até o rosto ficou disforme. De repente, de uma hora para outra, começou a fazer muitas cirurgias plásticas. Recortou e reformou todo o corpo, tratou o cabelo. Estava irreconhecível, bonita, modernizada. 

Os cortes mais recentes ainda estavam cicatrizando quando anunciou algo que ninguém havia acreditado num primeiro momento: faria uma das mais recentes técnicas que a medicina, a física quântica e a energia nuclear haviam permitido ao ser humano desenvolver: a migração de corpo. 

Funciona assim – dizem que já há casos bem sucedidos – a pessoa sai do seu corpo e passa a habitar noutro corpo, de alguém que morreu recentemente. Entre seres humanos era relativamente fácil, mas também era possível com animais. E essa senhora havia decidido viver num corpo de galinha.

E o pior: o procedimento era irreversível. Ou seja, ela estava definitivamente descartando seu corpo para virar um frango.

Imagem de Pexels por Pixabay.

Ela pediu ao filho para levá-la até a clínica para fazer o procedimento. O rapaz sentia um misto de inconformidade e resignação. Resignou-se simplesmente por não poder fazer nada, tentou falar, argumentar, explicar, convencer… não importava o que ele falasse, sua mãe simplesmente não lhe dava ouvidos. Ele dizia que era o sonho dela, de que ela estava feliz…

Eu, amiga próxima da família, fui até a clínica para fazer companhia à senhora e ao filho. Tomei a liberdade de perguntar a ela porque ela escolheu uma galinha. Ela explicou que sempre gostou de galinhas e queria saber como é se sentir uma galinha. Ela falava feliz, olhando ao longe, como se enxergasse, acima e além da linha do horizonte, um outro mundo que nós não conseguimos acessar. Imaginei inicialmente que ficaríamos conversando para o tempo passar mais rápido, mas dito isso, um silêncio mortal se impôs.

Eu me perguntava se ela havia se dado conta de que não poderia mais falar, nunca mais se sentaria à mesa para uma refeição, começaria a comer insetos e minhocas, de que faria cocô por todos os lados… quem iria limpar? Ela iria viver em casa ou teriam que construir um galinheiro? 

O filho educadamente me informou, ainda que transparecendo vergonha e revolta, que eu poderia saber tudo sobre o andamento do procedimento pelos maiores sites de notícias e também pelo site da Sociedade Internacional de Pesquisas Médicas sobre Migração Corpórea.

Então chegou uma profissional para nos atender. Ela explicou que a migração demora alguns dias, que a senhora teria de ficar internada e seria monitorada dia e noite por sofisticada aparelhagem e dois profissionais especializadíssimos. Esse monitoramento tem dois objetivos: aumentar a segurança para a senhora e também registrar detalhadamente todo o processo para subsidiar novos estudos. A profissional explicou que aos poucos, ela passaria a sentir partes do seu corpo como uma galinha: sentiria um grande bico no rosto, perceberia o corpo mudando de forma e, por fim, sentiria vontade de bater asas. Os olhos da senhora brilhavam. Mas a moça explicou que existe algum risco de não funcionar, podem ocorrer idas e vindas, por exemplo, o procedimento poderia bloquear no finalzinho e, por algum motivo, ser necessário recomeçar. Existia ainda o risco de não ser possível finalizar e, nesse caso, se tudo desse certo, ela conseguiria voltar totalmente para o corpo antigo e seguir sua vida como antes. Ela afirmou que a equipe estava confiante que seria um sucesso e então, em três dias, a senhora teria o corpo do belo animal de seus sonhos. E, na pior das hipóteses, em no máximo uma semana a situação se resolveria.

O filho ouvia tudo em silêncio, imóvel, sem esboçar emoção – não esboçava nem sinal de vida, para falar a verdade. Ele estava morrendo por dentro.

Eu tinha mil perguntas, mas não me atrevi a fazer nenhuma. De repente, para mim, estava tudo tragicamente claro.

Vício

Um menino nasceu na terra do gelo. Era um lugar lindo, o sol formava luzes incríveis, a noite gélida exalava introspecção, beleza e mistério. Ali qualquer um se podia locomover mais rápido do que em qualquer outro lugar do mundo, pois havia muitos caminhos de gelo para esquiar e lagos congelados para patinar. Mas havia caminhos muito perigosos, por isso as crianças passavam muitos anos aprendendo a esquiar e conhecendo todos os caminhos naquela região.  As mães cuidavam para que a casa estivesse sempre aquecida, tinham de abastecer as fogueiras constantemente, afinal a família precisava sobreviver naquela região inóspita. Os pais levavam as crianças para patinar desde cedo, pois todos tinham que aprender, era preciso. 

Aconteceu que o pai desse menino morreu quando ele ainda era muito pequenino. Ali havia um costume: não se enterravam os mortos jovens; eles ficavam guardados numa caixa, congelados, nos fundo do quintal, durante algumas décadas antes de serem enterrados. 

A mãe do menino se desdobrava para manter a casa aquecida e também levar o menino para patinar. Ela não dava conta de fazer nenhuma das duas coisas direito, mas mesmo assim o menino foi crescendo. Aos 14 anos, era hora de começar a patinar e esquiar sozinho. Mas o menino não se sentia seguro, tinha muito medo de escorregar. Então, não podendo mais segurar na mão de ninguém, decidiu que encontraria algo grande para lhe apoiar, e lembrou da caixa nos fundos do quintal. Buscou a caixa, amarrou nela uma corda forte e passou a esquiar e patinar por todos os lados arrastando a pesada caixa. Ele sentia como se estivesse sempre segurando a mão de alguém. 

Ao mesmo tempo, cansava muito. Sem querer, às vezes atrapalhava e até machucava alguém com quem cruzava o caminho. Algumas vezes, a pesada caixa escorregava mais rápido do que sua pouca habilidade lhe permitia controlar, e ele sofreu alguns acidentes. Quando lhe perguntavam porque não largava dessa caixa, ele dizia que aquilo o ajudava. Algumas poucas vezes se aventurou a passear sem a caixa, mas sentia muito medo de escorregar perto dos precipícios. Sentia que a caixa o ancorava.

Um dia, alguém cruzou seu caminho com velocidade e ele perdeu o controle. Começou a escorregar. Alguém viu o movimento e gritou: freie os patins! Ele freou e conseguiu parar, mas a caixa não tinha freios e, deslizando com velocidade, o arrebatou e o arrastou para o precipício.