Oposição de ideologias

Depois de alguns anos, visitei a república onde morei quando era estudante. Será que ainda havia algum conhecido morando lá, ou todos já teriam concluído seus cursos?

Logo na entrada algo estava diferente. No amplo hall da casa, com pé direito alto e iluminação limitada por pequenas janelas antigas,  vi dois cartazes, um de cada lado do hall, o mais distantes possível um do outro. Num estava escrito: “precisamos das chaves e não podemos pagar”, e do outro lado, o cartaz dizia: “é injusto uns pagarem por todos”.

Enquanto eu estava parada, chegou um rapaz.

– Oi, tudo bem?

– Oi, eu disse. Eu morei aqui há alguns anos, vim visitar.

– Legal, fique à vontade, se precisar de alguma coisa é só falar. 

– Pode me explicar o que são esses cartazes?

– Ah, é a nova forma de fazer assembleias. 

Lembro de quando fazíamos assembleias, todos os moradores reunidos ali no hall, nas escadas, com inscrição para falar em ordem organizada e votação ao final.

– Como assim, cadê a assembleia?

– É que o pessoal evita se reunir porque sempre dá briga. A república está dividida, uns são totalmente miseráveis e outros são pobres. Mas os pobres conseguem se alimentar bem e sobram uns centavos no final do mês. Acontece que semana passada a fechadura da entrada estragou e tivemos de trocar a chave. Cada morador precisa de uma cópia nova, mas não temos dinheiro para fazer as cópias. Daí o grupo dos miseráveis, que chama o outro grupo de “rico”, exige que este pague as cópias de todos.

– Mas não daria para deixar sempre uma chave em casa e qualquer morador que estiver em casa abre a porta para os outros? 

– Não dá, os dois grupos não se falam, ninguém de um grupo abriria a porta para alguém do outro.

– Ah… e você de qual grupo é?

– Nenhum dos dois. Na realidade sou igual a todos, todo mundo aqui está na mesma, só eles que não veem isso. Eu entro quieto e saio calado…

– Mas você tem chave?

– Não, eu passo pela janela da cozinha, que não tem tranca.

Vida e morte

Faz dois anos, perdi uma perna num acidente de carro e tive complicações durante os seis meses que fiquei no hospital. Durante esse período, me transformei completamente, os músculos atrofiaram, desapareceu totalmente meu sex appeal – para mim, essa foi a pior coisa que aconteceu naquele momento.

Finalmente saí do hospital e depois de dois meses, o câncer havia consumido metade do meu fígado. Mais uma cirurgia, longo tempo no hospital. Confesso que eu já estava cansado de viver, mas fiquei feliz quando recebi alta, mesmo com o tratamento contínuo.

Depois, veio a Covid. Eu já havia passado por muitos tratamentos… mas a Covid me sufocava de uma maneira desesperadora. Fui entubado e – nem acredito – sobrevivi. Mas ainda vivo com constante falta de ar e fraqueza, faz dois meses.

Essa semana fiz novos exames, e hoje pela manhã os médicos me disseram que eu não farei mais cirurgias, que eu tenho menos de dois meses de vida e que meu fim vai ser sofrido, infelizmente.

Mas me deram um alento: eu posso pedir desde já a eutanásia. Se eu preferir esperar, posso pedir depois, quando a dor aumentar muito. Se eu quiser ainda essa semana, preciso confirmar até amanhã, pois eles precisam agendar horário para o procedimento. 

Meu mundo terminou de cair. Mas a ideia é tentadora. Junto com meu corpo, minha vida também se despedaçou. Dou-me conta do quanto fui ingênuo quando acreditei que seria recompensado por ser bom, ou castigado por ser ruim. Não tem nada a ver, tem um monte de gente ruim sortuda, e gente boa se dando mal. Minha família cuida de mim, mas sei que sou um peso. Sofrem por mim, mas sei que sofrem mais por ter que cuidar de mim. As pessoas me olham com pena ou repugnância. E o Deus amoroso, cadê? Nem o velho barbudo vingativo não existe, não existe nada disso. Se eu não sentisse alguma dor, eu diria que nem eu existo, às vezes penso que sou uma ilusão, preso numa matrix. Hoje não quero mais pensar em nada, estou exausto.

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Instantes depois, uma mulher alta, jovem e bonita chegou bem perto do seu rosto e disse: vem comigo. Ele não teve escolha, saiu caminhando atrás da mulher. Ela o levou por um corredor branco, depois entraram em um quarto branco no qual havia uma cama, com várias pessoas ao redor de uma maca. Chegou mais perto e viu um corpo sendo retalhado. Quando se aproximou, viu o seu próprio corpo sendo cortado. E ele ali do lado, olhando… mas não tinha nenhuma dor. Pelo contrário, sentia-se completamente leve e com uma alegria transbordante. Paradoxalmente, sentiu-se mais vivo do que nunca.

Acordou renovado, com uma irracional, inexplicável e inabalável paz e confiança no futuro.

Lembrou da oferta da eutanásia. Ligou para o hospital e disse: “Com corpo ou sem corpo, escolho a vida”.

Vício

Um menino nasceu na terra do gelo. Era um lugar lindo, o sol formava luzes incríveis, a noite gélida exalava introspecção, beleza e mistério. Ali qualquer um se podia locomover mais rápido do que em qualquer outro lugar do mundo, pois havia muitos caminhos de gelo para esquiar e lagos congelados para patinar. Mas havia caminhos muito perigosos, por isso as crianças passavam muitos anos aprendendo a esquiar e conhecendo todos os caminhos naquela região.  As mães cuidavam para que a casa estivesse sempre aquecida, tinham de abastecer as fogueiras constantemente, afinal a família precisava sobreviver naquela região inóspita. Os pais levavam as crianças para patinar desde cedo, pois todos tinham que aprender, era preciso. 

Aconteceu que o pai desse menino morreu quando ele ainda era muito pequenino. Ali havia um costume: não se enterravam os mortos jovens; eles ficavam guardados numa caixa, congelados, nos fundo do quintal, durante algumas décadas antes de serem enterrados. 

A mãe do menino se desdobrava para manter a casa aquecida e também levar o menino para patinar. Ela não dava conta de fazer nenhuma das duas coisas direito, mas mesmo assim o menino foi crescendo. Aos 14 anos, era hora de começar a patinar e esquiar sozinho. Mas o menino não se sentia seguro, tinha muito medo de escorregar. Então, não podendo mais segurar na mão de ninguém, decidiu que encontraria algo grande para lhe apoiar, e lembrou da caixa nos fundos do quintal. Buscou a caixa, amarrou nela uma corda forte e passou a esquiar e patinar por todos os lados arrastando a pesada caixa. Ele sentia como se estivesse sempre segurando a mão de alguém. 

Ao mesmo tempo, cansava muito. Sem querer, às vezes atrapalhava e até machucava alguém com quem cruzava o caminho. Algumas vezes, a pesada caixa escorregava mais rápido do que sua pouca habilidade lhe permitia controlar, e ele sofreu alguns acidentes. Quando lhe perguntavam porque não largava dessa caixa, ele dizia que aquilo o ajudava. Algumas poucas vezes se aventurou a passear sem a caixa, mas sentia muito medo de escorregar perto dos precipícios. Sentia que a caixa o ancorava.

Um dia, alguém cruzou seu caminho com velocidade e ele perdeu o controle. Começou a escorregar. Alguém viu o movimento e gritou: freie os patins! Ele freou e conseguiu parar, mas a caixa não tinha freios e, deslizando com velocidade, o arrebatou e o arrastou para o precipício.

Uma mulher à altura

Ele encontrou a mulher dos seus sonhos, era o relacionamento perfeito. Linda, com um corpo absolutamente escultural, um bom humor incrível, parecia que ela lia seus pensamentos e sempre conseguia fazê-lo feliz. Finalmente ele encontrou alguém à sua altura. Ele até gostava de observar os olhares dos amigos, misto de admiração e inveja. Namoraram durante  alguns meses e decidiram morar juntos, sem formalidades. Foram imensamente felizes durante 2 anos.

Ela era vaidosa e investia na sua beleza extraordinária. Às vezes ela comprava coisas um pouco caras. Apesar de ela não trabalhar, ela tinha seu próprio dinheiro, pois havia recebido uma herança razoável do pai, segundo ela mesma contou. Um dia ela chegou em casa com um anel realmente caro. Ele conhecia joias, então tinha certeza que ela pagou uma pequena fortuna por aquele anel. Mas aquele anel… Ele perguntou e ela explicou:

– Este aqui? Ah, sim, ia te mostrar. Fui ao shopping só para dar uma volta, me alegrar um pouco, estava me sentindo sozinha… e quando passei em frente à vitrine, vi este anel e pensei: “Oh meu Deus! É perfeito! Foi feito para mim!” Não tenho palavras para dizer como eu me senti, toda minha solidão desapareceu, fiquei tão empolgada!! Não resisti: entrei e comprei! Foi um pouco caro… mas eu amei tanto!

Ele ficou contente ao ver a felicidade dela, e ao mesmo tempo ele se sentiu culpado por ela estar se sentindo sozinha. Talvez ele estivesse trabalhando demais. 

Ela apareceu com algumas compras extremamente caras, até mesmo para o padrão de vida elevado que tinham: roupas, perfumes, joias. 

Vou resolver isso! Pensou.

Ele se dedicou mais ao relacionamento. Saíram para jantar algumas vezes e fizeram algumas viagens curtas nos finais de semana. 

Numa sexta-feira, ele conseguiu liberar a tarde inteira, chegou em casa logo depois do almoço. Ela não estava, mas chegou logo em seguida. 

– Oi amor, você está aí?? Ah… que bom! 

E começou a falar rápido.

– Deixa eu tomar um banho, caminhei tanto, fui almoçar naquele restaurante que a gente foi uma vez, lembra…

Ele não ouvia mais nada, estava concentrado no cheiro do perfume masculino que adentrou com ela. Ele conhecia muitos perfumes, sabia até o nome do excelente perfume francês que ela exalava, tinha certeza. 

Rapidamente ela foi tomar banho e ele ficou sentindo aquele perfume inconfundível no ar. E ele realmente sentiu uma dor no peito: aquele perfume não era dele. Traição! Sentiu-se traído. Mas no fundo, quase não conseguia acreditar.

Não falou sobre o assunto. Naquele dia ela foi apaixonadamente amorosa e carinhosa. Naquela noite, ela o fez mais feliz do que nunca. Todas as suas desconfianças se diluíram: ela realmente o amava. Não havia dúvida.

Porém, ele não esquecia aquele perfume. Um dia ela saiu e ele decidiu mexer nas coisas dela. Encontrou debaixo do fundo de uma caixa de maquiagem, bem dobrada, uma certidão de casamento. Constavam ali três casamentos e três separações.. Ela havia dito que nunca casou pois nunca havia encontrado um amor verdadeiro. Ele ficou estarrecido. Seu mundo desabou.

Um dos ex-maridos era famoso, os outros dois ele pesquisou na internet. Todos pertenciam à alta sociedade – mais alta do que ele próprio. E a cada casamento ela mudava de nome. 

Sentiu um frio imenso na espinha: ele estava vivendo com uma golpista, uma incrível intérprete do papel de mulher perfeita. 

Nos dias seguintes, alegou excesso de trabalho na empresa, saia cedo e chegava tarde. Pelo olhar dela, ele percebeu que ela desconfiava de algo. Ela o olhava com olhos fixos de gata, hipnotizante, como se pudesse ler os pensamentos dele. Ele tentava aparentar naturalidade em tudo, mas ela sempre conseguia ser mais espontânea e criativa. Obviamente ele não encenava bem, e ela sabia disso. Mas, habilidosa, ela sempre entrava no jogo e fazia parecer que ele estava dominando a cena.

Um mês depois, ele estava exaurido. Um dia tomou coragem e falou tudo que ele sabia. Ele queria dar-lhe apenas algum dinheiro, mas ela queria o apartamento, e ela revelou ser a negociadora mais habilidosa e agressiva que ele já havia conhecido em toda a sua vida de executivo. Ela ameaçou inventar horrores sobre ele nas redes sociais e até na imprensa, e ainda arrematou: você sabe que a verdade é uma questão de ponto de vista, não é? 

Chegaram enfim a um acordo: ele depositou um bom valor em dinheiro na conta dela e transferiu para ela o carro, o seu carro, seu xodó, que custou uma fortuna. Ele tremia de raiva quando entregou o carro a ela, mas pensou: eu entrego os anéis para não perder os dedos. 

Ela entrou no carro e foi imediatamente ao shopping, visitar uma de suas lojas preferidas e comprou a sandália e a bolsa mais caras da loja. Sentia-se deslumbrada com a sandália cravejada de joias que acabara de comprar. Sentia que estava pisando nas nuvens, e foi para o apartamento do amante, que seria a partir desse dia, seu novo esposo.

O falastrão

– Bom dia querida!

– Bom dia.

– O que temos para o café? Hum omelete! Acertou, estou com fome.

– Eu também. 

– Há eu gosto assim, você sabe né? Um pouco torrado ao redor, mas macio por centro, assim meio grosso, pra ficar com essa textura…

Depois de vinte minutos falando, ele estava saindo.

–  Muito bem, o trabalho me espera, hoje vai ser um dia cheio, tenho metas importantes para hoje! Eu ia dizer pra você me desejar sorte, mas tenho certeza que nem precisarei! Hahaha. Tchau, até de noite!

– Tchau.

Todo dia era assim. Ele era o centro, ele falava, ele tinha todas as iniciativas para tudo. Quando o conheceu, ela se encantou com a personalidade dele, extrovertido e cheio de autoconfiança.

Ela era o contrário dele. Desde criança se sentia invisível. Às vezes queria ser vista; outras vezes, sentia uma vontade inexplicável de sumir, desaparecer de vez.

– Bom dia minha querida!

– Bom dia.

– Cheiro de torrada! Minha preferida! Eu sei que a mais tostada é a minha… só tem uma?

– É a sua.

– Você não vai comer?

– Estou sem apetite, me sinto fraca… faz tempo, na verdade…

– Há já sei! Então você precisa de um café da manhã mais reforçado! Nenhuma fraqueza resiste a uma omelete com torrada com queijo derretido…

Depois de vinte minutos falando, ele estava saindo.

– Tchau querida!

– Tchau.

Alguns dias depois…

– Bom dia querida!

– Bom dia.

– O que temos pro café hoje? Só pão e requeijão?

– Estou sem energia pra fazer nada. 

– Ah, tudo bem, descanse um pouco. Eu me viro com isso mesmo. Depois eu faço um almoço reforçado…

Pela primeira vez ela o interrompeu. 

– Preciso te contar algo importante…

– Ah, minha querida, por falar em importante, você é a coisa mais importante da minha vida, nada seria mais importante do que você, você sabe disso, não é?

– Sim, mas ontem fui ao médico…

– O Dr. José? Ah! Ele é incrível não é? Faz tempo que não vou lá. Da última vez ele me disse “a sua voz ainda vai ecoar por muito tempo, você está forte como um touro!!” Hahaha, ouviu isso? Forte como um touro!

– Não fui ao Dr. José, precisei de outra especialidade, na verdade…

– Agora que eu vi a hora, estou quase atrasado, se vir o Dr. José, mande lembranças! Tchau meu amor!

– Mas… tchau.

Alguns dias depois…

– Há, você ainda está na cama? Desculpe, vou me vestir com a luz apagada para deixar você dormir… você anda sonolenta hein? Talvez seria bom ir ao médico. O Dr. José é muito bom, lembra dele? Ah, desculpe, você está dormindo. Pode ficar aí, eu já encontrei minha roupa, não se preocupe comigo, eu vou tomar café naquela padaria da esquina, sabe qual? Lá, o café é quase tão bom quanto o seu. Tchau querida!

O dia passou rápido. À noite, quando ele voltou, estranhamente não tinha ninguém em casa. Em poucos minutos ouviu a campainha e foi atender.

– Sim!

– Olá, sou seu vizinho de apartamento…

– Sim, eu sei, já nos encontramos no elevador algumas vezes, não é? Em alguns dias quando eu saí em horário diferente encontrei o senhor, é que normalmente eu saio bem cedo…

– Tentamos contato com o senhor a tarde inteira…

– Ah, hoje passei o dia correndo, passei a tarde ocupado com três reuniões, foi uma loucura…

– Entendo, mas queria lhe falar sobre sua esposa.

– Ah, sim, ela é uma pessoa maravilhosa, mas sabe, vou lhe dizer uma coisa, em tantos anos de casados ela sempre estava em casa nesse horário e o senhor não vai acreditar, pela primeira vez chego em casa e ela não está! Sabe…

O vizinho interrompeu e falou alto.

– Ela foi encontrada morta em casa hoje e acabou de ser enterrada.

– O quê??

– Isso que o senhor ouviu, sinto muito falar dessa forma, é que eu estava tentando lhe dizer… 

– Mas como assim? Morrer assim de uma hora pra outra? Que tristeza!

– Na verdade ela estava doente há meses…

– Que tristeza! Mas e agora, quem vai morar comigo? Assim, de uma hora para outra, eu não estava preparado! 

Fez meio segundo de silêncio. E continuou de supetão.

– Sabe amigo, vou lhe contar um segredo: ela era a pessoa com quem eu mais gostava de conversar…

E o vizinho conseguiu se desvencilhar depois de dez minutos e dezoito olhadas discretas para o relógio.

Ele, o falastrão, entrou no seu apartamento. Sozinho.

Guerra

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Ele lutou como um homem, como só um bravo homem lutaria. Por seu país, por seus colegas, vestiu e honrou a farda militar. Foi o que me disse o comandante, um dos poucos sobreviventes do batalhão. Agradeci a condecoração e me retirei, sem cerimônia. Então senti que estava sendo seguido. Quando olhei para trás, vi o batalhão, quase completo, todos caminhavam em minha direção me olhando. Paralisei. Dentre tantos, o reconheci, ele continuou caminhando, parou na minha frente e entregou-me uma folha de papel. “Por favor, entregue para ela”. Prometi que entregaria. Estava escrito: Sinto muito… Quero que saiba que estou bem, junto de meus companheiros. Gostei do nome que você escolheu, cuide bem do nosso pequenino. Te amo.