O pai

O tio convenceu a mãe a deixar o menino ir com ele ao parque, com a condição de voltarem em uma hora. Foram de carro para o outro lado da cidade.

Chegaram. Entraram num restaurante simples, com cadeiras velhas e nenhuma decoração. Então caminharam até uma mesa onde havia um homem almoçando: 

– Olá, visita pra você! 

O homem virou o pescoço e olhou para o menino, para o tio, de novo para o menino, longamente. E falou: 

– Como está grande… é parecido comigo.

O tio se despediu e o homem se comprometeu a levar o menino para casa mais tarde. 

O homem telefonou para o patrão avisando que nessa tarde não iria trabalhar. Quando o menino disse que a mãe ficaria preocupada, o pai apenas disse: não se preocupe, ela vai ficar bem.

Foram a um parque, conversaram sobre a escola e diversos assuntos. O pai o ajudou a subir em todos os brinquedos e árvores, até as mais altas. Comprou um pastel quando o menino ficou com fome.

No final da tarde, disse que estava na hora de ir pra casa. O menino então tomou coragem e perguntou: 

– Pai, por que a mãe diz que você é ruim?

O pai o olhou sério, depois sorriu tranquilamente e disse: 

– É uma longa história… mas já passou e você não precisa ter medo de nada.

Quando chegaram em casa, a mãe apareceu na porta e tomou um baita susto. O pai falou, lá do portão de entrada: 

– Pode ficar tranquila, aqui só tem dois amigos homens: eu e o nosso filho.

O menino se sentiu muito bem ao ouvir que ele era um “homem”, assim como o pai. 

Dali em diante, o menino passou a visitar o pai todas as semanas. 

Mudança de corpo

Aquela senhora havia feito dezenas de plásticas no ano anterior. Durante uma vida toda teve um corpo desgrenhado, pois se estressou tanto com tudo que nem conseguiu olhar para o próprio corpo. Acumulou peles e pelancas, cabelos arrepiados e quebradiços, até o rosto ficou disforme. De repente, de uma hora para outra, começou a fazer muitas cirurgias plásticas. Recortou e reformou todo o corpo, tratou o cabelo. Estava irreconhecível, bonita, modernizada. 

Os cortes mais recentes ainda estavam cicatrizando quando anunciou algo que ninguém havia acreditado num primeiro momento: faria uma das mais recentes técnicas que a medicina, a física quântica e a energia nuclear haviam permitido ao ser humano desenvolver: a migração de corpo. 

Funciona assim – dizem que já há casos bem sucedidos – a pessoa sai do seu corpo e passa a habitar noutro corpo, de alguém que morreu recentemente. Entre seres humanos era relativamente fácil, mas também era possível com animais. E essa senhora havia decidido viver num corpo de galinha.

E o pior: o procedimento era irreversível. Ou seja, ela estava definitivamente descartando seu corpo para virar um frango.

Imagem de Pexels por Pixabay.

Ela pediu ao filho para levá-la até a clínica para fazer o procedimento. O rapaz sentia um misto de inconformidade e resignação. Resignou-se simplesmente por não poder fazer nada, tentou falar, argumentar, explicar, convencer… não importava o que ele falasse, sua mãe simplesmente não lhe dava ouvidos. Ele dizia que era o sonho dela, de que ela estava feliz…

Eu, amiga próxima da família, fui até a clínica para fazer companhia à senhora e ao filho. Tomei a liberdade de perguntar a ela porque ela escolheu uma galinha. Ela explicou que sempre gostou de galinhas e queria saber como é se sentir uma galinha. Ela falava feliz, olhando ao longe, como se enxergasse, acima e além da linha do horizonte, um outro mundo que nós não conseguimos acessar. Imaginei inicialmente que ficaríamos conversando para o tempo passar mais rápido, mas dito isso, um silêncio mortal se impôs.

Eu me perguntava se ela havia se dado conta de que não poderia mais falar, nunca mais se sentaria à mesa para uma refeição, começaria a comer insetos e minhocas, de que faria cocô por todos os lados… quem iria limpar? Ela iria viver em casa ou teriam que construir um galinheiro? 

O filho educadamente me informou, ainda que transparecendo vergonha e revolta, que eu poderia saber tudo sobre o andamento do procedimento pelos maiores sites de notícias e também pelo site da Sociedade Internacional de Pesquisas Médicas sobre Migração Corpórea.

Então chegou uma profissional para nos atender. Ela explicou que a migração demora alguns dias, que a senhora teria de ficar internada e seria monitorada dia e noite por sofisticada aparelhagem e dois profissionais especializadíssimos. Esse monitoramento tem dois objetivos: aumentar a segurança para a senhora e também registrar detalhadamente todo o processo para subsidiar novos estudos. A profissional explicou que aos poucos, ela passaria a sentir partes do seu corpo como uma galinha: sentiria um grande bico no rosto, perceberia o corpo mudando de forma e, por fim, sentiria vontade de bater asas. Os olhos da senhora brilhavam. Mas a moça explicou que existe algum risco de não funcionar, podem ocorrer idas e vindas, por exemplo, o procedimento poderia bloquear no finalzinho e, por algum motivo, ser necessário recomeçar. Existia ainda o risco de não ser possível finalizar e, nesse caso, se tudo desse certo, ela conseguiria voltar totalmente para o corpo antigo e seguir sua vida como antes. Ela afirmou que a equipe estava confiante que seria um sucesso e então, em três dias, a senhora teria o corpo do belo animal de seus sonhos. E, na pior das hipóteses, em no máximo uma semana a situação se resolveria.

O filho ouvia tudo em silêncio, imóvel, sem esboçar emoção – não esboçava nem sinal de vida, para falar a verdade. Ele estava morrendo por dentro.

Eu tinha mil perguntas, mas não me atrevi a fazer nenhuma. De repente, para mim, estava tudo tragicamente claro.

Oposição de ideologias

Depois de alguns anos, visitei a república onde morei quando era estudante. Será que ainda havia algum conhecido morando lá, ou todos já teriam concluído seus cursos?

Logo na entrada algo estava diferente. No amplo hall da casa, com pé direito alto e iluminação limitada por pequenas janelas antigas,  vi dois cartazes, um de cada lado do hall, o mais distantes possível um do outro. Num estava escrito: “precisamos das chaves e não podemos pagar”, e do outro lado, o cartaz dizia: “é injusto uns pagarem por todos”.

Enquanto eu estava parada, chegou um rapaz.

– Oi, tudo bem?

– Oi, eu disse. Eu morei aqui há alguns anos, vim visitar.

– Legal, fique à vontade, se precisar de alguma coisa é só falar. 

– Pode me explicar o que são esses cartazes?

– Ah, é a nova forma de fazer assembleias. 

Lembro de quando fazíamos assembleias, todos os moradores reunidos ali no hall, nas escadas, com inscrição para falar em ordem organizada e votação ao final.

– Como assim, cadê a assembleia?

– É que o pessoal evita se reunir porque sempre dá briga. A república está dividida, uns são totalmente miseráveis e outros são pobres. Mas os pobres conseguem se alimentar bem e sobram uns centavos no final do mês. Acontece que semana passada a fechadura da entrada estragou e tivemos de trocar a chave. Cada morador precisa de uma cópia nova, mas não temos dinheiro para fazer as cópias. Daí o grupo dos miseráveis, que chama o outro grupo de “rico”, exige que este pague as cópias de todos.

– Mas não daria para deixar sempre uma chave em casa e qualquer morador que estiver em casa abre a porta para os outros? 

– Não dá, os dois grupos não se falam, ninguém de um grupo abriria a porta para alguém do outro.

– Ah… e você de qual grupo é?

– Nenhum dos dois. Na realidade sou igual a todos, todo mundo aqui está na mesma, só eles que não veem isso. Eu entro quieto e saio calado…

– Mas você tem chave?

– Não, eu passo pela janela da cozinha, que não tem tranca.

Vida e morte

Faz dois anos, perdi uma perna num acidente de carro e tive complicações durante os seis meses que fiquei no hospital. Durante esse período, me transformei completamente, os músculos atrofiaram, desapareceu totalmente meu sex appeal – para mim, essa foi a pior coisa que aconteceu naquele momento.

Finalmente saí do hospital e depois de dois meses, o câncer havia consumido metade do meu fígado. Mais uma cirurgia, longo tempo no hospital. Confesso que eu já estava cansado de viver, mas fiquei feliz quando recebi alta, mesmo com o tratamento contínuo.

Depois, veio a Covid. Eu já havia passado por muitos tratamentos… mas a Covid me sufocava de uma maneira desesperadora. Fui entubado e – nem acredito – sobrevivi. Mas ainda vivo com constante falta de ar e fraqueza, faz dois meses.

Essa semana fiz novos exames, e hoje pela manhã os médicos me disseram que eu não farei mais cirurgias, que eu tenho menos de dois meses de vida e que meu fim vai ser sofrido, infelizmente.

Mas me deram um alento: eu posso pedir desde já a eutanásia. Se eu preferir esperar, posso pedir depois, quando a dor aumentar muito. Se eu quiser ainda essa semana, preciso confirmar até amanhã, pois eles precisam agendar horário para o procedimento. 

Meu mundo terminou de cair. Mas a ideia é tentadora. Junto com meu corpo, minha vida também se despedaçou. Dou-me conta do quanto fui ingênuo quando acreditei que seria recompensado por ser bom, ou castigado por ser ruim. Não tem nada a ver, tem um monte de gente ruim sortuda, e gente boa se dando mal. Minha família cuida de mim, mas sei que sou um peso. Sofrem por mim, mas sei que sofrem mais por ter que cuidar de mim. As pessoas me olham com pena ou repugnância. E o Deus amoroso, cadê? Nem o velho barbudo vingativo não existe, não existe nada disso. Se eu não sentisse alguma dor, eu diria que nem eu existo, às vezes penso que sou uma ilusão, preso numa matrix. Hoje não quero mais pensar em nada, estou exausto.

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Instantes depois, uma mulher alta, jovem e bonita chegou bem perto do seu rosto e disse: vem comigo. Ele não teve escolha, saiu caminhando atrás da mulher. Ela o levou por um corredor branco, depois entraram em um quarto branco no qual havia uma cama, com várias pessoas ao redor de uma maca. Chegou mais perto e viu um corpo sendo retalhado. Quando se aproximou, viu o seu próprio corpo sendo cortado. E ele ali do lado, olhando… mas não tinha nenhuma dor. Pelo contrário, sentia-se completamente leve e com uma alegria transbordante. Paradoxalmente, sentiu-se mais vivo do que nunca.

Acordou renovado, com uma irracional, inexplicável e inabalável paz e confiança no futuro.

Lembrou da oferta da eutanásia. Ligou para o hospital e disse: “Com corpo ou sem corpo, escolho a vida”.

Aventura e mistério na obra abandonada

E ele saltou com toda a força para chegar na outra borda, mas ao aterrissar, algo deu errado, e ele escorregou, e não havia onde segurar, e um frio arrepiante de medo e susto percorreu o corpo. Ele não estava preparado para aquele tombo.

Havia rememorado esse momento incontáveis vezes. Agora, estava naquele abismo.

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Era uma cratera no chão, no meio daquela construção abandonada perto de sua casa, ele estava no meio daquela obra agora, para sempre? Já havia chamado, gritado, chorado. Parecia que ninguém podia ouvi-lo. E sua perna doendo e inchando cada vez mais, com diversos esfolados por todos os lados, que ainda doíam.

Dessa vez ele estava sozinho, nem o seu cachorro foi junto. Não havia ninguém para buscar ajuda. Gostaria de ter um celular, um drone. E se alguém felizmente o encontrasse ali, ainda era certo que ficaria de castigo por ter ido brincar na obra abandonada. Era uma bagunça de ferros e concretos pra todo lado, estava do mesmo jeito desde que ele era bem pequenininho. Ele nunca tinha entrado lá, só olhava da rua. 

O que poderia haver de tão terrível, além de um grande buraco para cair dentro? Seus pais faziam uma cara de horror quando ele pedia para ir olhar a obra. “Lá é muito perigoso”. Só diziam isso. Ele sentia que havia mais para ser dito, mas ninguém dizia.

Nesse momento, ele sentiu um leve tremor no chão. Que estranho, mini terremoto?

Então o chão e tudo começou a chacoalhar intensamente, a poeira levantou e pequenos pedregulhos caíram sobre ele. Num milésimo de segundo, abriu-se um buraco sob seu corpo e ele despencou, não deu nem tempo de sentir frio na barriga.

Poff! Imóvel, tentou olhar ao redor no meio da poeira. Estava vivo, sua perna continuava doendo, mas no mais, parecia bem. 

– Quem é o novato?

Ele tomou o maior susto da sua vida.

– Não sei… olha, é um garoto!

– O quê? Esses desgraçados não tem limites!! Estão contratando adolescentes?? Espero que pelo menos tenham pago o teu salário. Como é o teu nome?

Ficou paralisado. Havia uns dez homens em volta dele, com roupas e capacetes de obra, todos muito curiosos, e alguns pareciam um pouco machucados, assim como ele mesmo.

– Será que ele sabe falar? 

– Dá um tempo, ele tá com medo.

– Traz uma água pro menino.

– Não tem, eles não trocam aquele galão faz tempo, lembra?

– É mesmo.

– Ele está sem equipamento de segurança.

– Mas você é chato mesmo né!! Não vê que ninguém te ouve? Ninguém usa esse monte de máscara, capacete, trava-queda e blá blá blá…

– Se fizessem tudo certo a gente podia estar vivo seu idiota!

– KKKK ele já tá pirado!

– Ah ah! Carlos você é louco mesmo.

– Sou eu o louco?? Só vocês que não veem…

– Tá, parem, parem, deixem disso. Olhem a cara do menino, coitado, apavorado. E ele tá machucado. Menino, faz tempo que você tá aqui?

Ele conseguiu falar, tremendo:

– Não sei…

– É igual a nós, parece que faz anos, o tempo não passa. 

Então ele ouviu uma voz ao longe chamando seu nome:

– Joãoo!! Joãooo!!!

Ele disse: 

– Vocês ouviram isso? 

– Joããoooo!! 

– Eu ouvi! É o seu nome?

– Sim! Eu sou João!

– Ouviram o quê?

– Não ouvi nada.

– Chiu! Escuta!

João ouviu latidos de cães e novamente pessoas chamando seu nome. Tentou gritar, mas se sentia muito fraco. 

– Vieram procurar o menino. Vão resgatar a gente também! Estamos salvos! Ele tá aqui!! Nós estamos aquiii!!!

E todos começaram a gritar, numa euforia indescritível  – exceto aquele homem louco, que tinha dito que todos estão mortos. Nesse momento, com um sorriso, o louco se abaixou do lado de João e falou baixinho, para só João ouvir: 

– Quem sabe agora eles vão entender e vou conseguir tirar meus colegas daqui. Obrigado por ter vindo. Boa sorte, garoto!

E João sentiu lambidas no seu rosto. Um enorme cachorro marrom dava latidos altos e abanava muito o rabo comprido.

– Aqui, ele está aqui! Está vivo!!

E João sentiu que alguém falava com ele, mas não tinha forças para responder, só piscou os olhos e mexeu os dedos, como lhe pediram. E via seus novos amigos pedindo para serem levados, mas os bombeiros só prestavam atenção nele, João. Então uma médica com roupas brancas se aproximou deles e disse: 

– Vocês adultos, venham todos comigo.

João viu aqueles homens caminhando junto com a médica, e ficou feliz por eles.

No quarto do hospital, João finalmente pôde ver sua mãe e seu pai. Estavam tão felizes por ele estar vivo que nem xingaram. E resolveu perguntar pelos outros homens.

– Que homens? Você foi com algum amigo até a obra?

– Não mãe, aqueles homens que estavam morando na obra.

– Ah, tem mendigos morando lá?

– Não pai!! Eu estou falando daqueles dez trabalhadores da obra, um deles se chama Carlos, que manda todo mundo usar capacete e essas coisas.

João viu seu pai e sua mãe fazerem a mesma cara de horror que faziam quando João insistia para brincar na obra, mas dessa vez também ficaram pálidos. 

– Onde eles estão, eles acompanharam uma médica, vieram para este hospital?

– Hããã…. Provavelmente não…  disse o pai.

– Mas que bom que você está bem né filho! Logo você vai sair do hospital e então todos os seus amigos virão te visitar, estavam todos preocupados…

João nem ouviu o resto da frase. Não entendia porque ninguém nunca tinha falado daqueles homens da obra. Estava muito feliz porque agora eram todos seus amigos. Não perguntou mais nada e se resignou, afinal, nunca entendeu muito bem os adultos.

Agricultor

Sei plantar, cultivar, colher,

Sei guiar pelo cabresto

Posso prever se vai chover

quando o vento fica crespo 

 

O perfume mais gostoso

é o da laranjeira em flor

Onde o sabiá encontra pouso

e espera o sol, despertador

 

E todo dia de manhã

Recomeça o meu labor

Junto com a natureza irmã

Não paro até o sol se pôr

Vício

Um menino nasceu na terra do gelo. Era um lugar lindo, o sol formava luzes incríveis, a noite gélida exalava introspecção, beleza e mistério. Ali qualquer um se podia locomover mais rápido do que em qualquer outro lugar do mundo, pois havia muitos caminhos de gelo para esquiar e lagos congelados para patinar. Mas havia caminhos muito perigosos, por isso as crianças passavam muitos anos aprendendo a esquiar e conhecendo todos os caminhos naquela região.  As mães cuidavam para que a casa estivesse sempre aquecida, tinham de abastecer as fogueiras constantemente, afinal a família precisava sobreviver naquela região inóspita. Os pais levavam as crianças para patinar desde cedo, pois todos tinham que aprender, era preciso. 

Aconteceu que o pai desse menino morreu quando ele ainda era muito pequenino. Ali havia um costume: não se enterravam os mortos jovens; eles ficavam guardados numa caixa, congelados, nos fundo do quintal, durante algumas décadas antes de serem enterrados. 

A mãe do menino se desdobrava para manter a casa aquecida e também levar o menino para patinar. Ela não dava conta de fazer nenhuma das duas coisas direito, mas mesmo assim o menino foi crescendo. Aos 14 anos, era hora de começar a patinar e esquiar sozinho. Mas o menino não se sentia seguro, tinha muito medo de escorregar. Então, não podendo mais segurar na mão de ninguém, decidiu que encontraria algo grande para lhe apoiar, e lembrou da caixa nos fundos do quintal. Buscou a caixa, amarrou nela uma corda forte e passou a esquiar e patinar por todos os lados arrastando a pesada caixa. Ele sentia como se estivesse sempre segurando a mão de alguém. 

Ao mesmo tempo, cansava muito. Sem querer, às vezes atrapalhava e até machucava alguém com quem cruzava o caminho. Algumas vezes, a pesada caixa escorregava mais rápido do que sua pouca habilidade lhe permitia controlar, e ele sofreu alguns acidentes. Quando lhe perguntavam porque não largava dessa caixa, ele dizia que aquilo o ajudava. Algumas poucas vezes se aventurou a passear sem a caixa, mas sentia muito medo de escorregar perto dos precipícios. Sentia que a caixa o ancorava.

Um dia, alguém cruzou seu caminho com velocidade e ele perdeu o controle. Começou a escorregar. Alguém viu o movimento e gritou: freie os patins! Ele freou e conseguiu parar, mas a caixa não tinha freios e, deslizando com velocidade, o arrebatou e o arrastou para o precipício.

Uma mulher à altura

Ele encontrou a mulher dos seus sonhos, era o relacionamento perfeito. Linda, com um corpo absolutamente escultural, um bom humor incrível, parecia que ela lia seus pensamentos e sempre conseguia fazê-lo feliz. Finalmente ele encontrou alguém à sua altura. Ele até gostava de observar os olhares dos amigos, misto de admiração e inveja. Namoraram durante  alguns meses e decidiram morar juntos, sem formalidades. Foram imensamente felizes durante 2 anos.

Ela era vaidosa e investia na sua beleza extraordinária. Às vezes ela comprava coisas um pouco caras. Apesar de ela não trabalhar, ela tinha seu próprio dinheiro, pois havia recebido uma herança razoável do pai, segundo ela mesma contou. Um dia ela chegou em casa com um anel realmente caro. Ele conhecia joias, então tinha certeza que ela pagou uma pequena fortuna por aquele anel. Mas aquele anel… Ele perguntou e ela explicou:

– Este aqui? Ah, sim, ia te mostrar. Fui ao shopping só para dar uma volta, me alegrar um pouco, estava me sentindo sozinha… e quando passei em frente à vitrine, vi este anel e pensei: “Oh meu Deus! É perfeito! Foi feito para mim!” Não tenho palavras para dizer como eu me senti, toda minha solidão desapareceu, fiquei tão empolgada!! Não resisti: entrei e comprei! Foi um pouco caro… mas eu amei tanto!

Ele ficou contente ao ver a felicidade dela, e ao mesmo tempo ele se sentiu culpado por ela estar se sentindo sozinha. Talvez ele estivesse trabalhando demais. 

Ela apareceu com algumas compras extremamente caras, até mesmo para o padrão de vida elevado que tinham: roupas, perfumes, joias. 

Vou resolver isso! Pensou.

Ele se dedicou mais ao relacionamento. Saíram para jantar algumas vezes e fizeram algumas viagens curtas nos finais de semana. 

Numa sexta-feira, ele conseguiu liberar a tarde inteira, chegou em casa logo depois do almoço. Ela não estava, mas chegou logo em seguida. 

– Oi amor, você está aí?? Ah… que bom! 

E começou a falar rápido.

– Deixa eu tomar um banho, caminhei tanto, fui almoçar naquele restaurante que a gente foi uma vez, lembra…

Ele não ouvia mais nada, estava concentrado no cheiro do perfume masculino que adentrou com ela. Ele conhecia muitos perfumes, sabia até o nome do excelente perfume francês que ela exalava, tinha certeza. 

Rapidamente ela foi tomar banho e ele ficou sentindo aquele perfume inconfundível no ar. E ele realmente sentiu uma dor no peito: aquele perfume não era dele. Traição! Sentiu-se traído. Mas no fundo, quase não conseguia acreditar.

Não falou sobre o assunto. Naquele dia ela foi apaixonadamente amorosa e carinhosa. Naquela noite, ela o fez mais feliz do que nunca. Todas as suas desconfianças se diluíram: ela realmente o amava. Não havia dúvida.

Porém, ele não esquecia aquele perfume. Um dia ela saiu e ele decidiu mexer nas coisas dela. Encontrou debaixo do fundo de uma caixa de maquiagem, bem dobrada, uma certidão de casamento. Constavam ali três casamentos e três separações.. Ela havia dito que nunca casou pois nunca havia encontrado um amor verdadeiro. Ele ficou estarrecido. Seu mundo desabou.

Um dos ex-maridos era famoso, os outros dois ele pesquisou na internet. Todos pertenciam à alta sociedade – mais alta do que ele próprio. E a cada casamento ela mudava de nome. 

Sentiu um frio imenso na espinha: ele estava vivendo com uma golpista, uma incrível intérprete do papel de mulher perfeita. 

Nos dias seguintes, alegou excesso de trabalho na empresa, saia cedo e chegava tarde. Pelo olhar dela, ele percebeu que ela desconfiava de algo. Ela o olhava com olhos fixos de gata, hipnotizante, como se pudesse ler os pensamentos dele. Ele tentava aparentar naturalidade em tudo, mas ela sempre conseguia ser mais espontânea e criativa. Obviamente ele não encenava bem, e ela sabia disso. Mas, habilidosa, ela sempre entrava no jogo e fazia parecer que ele estava dominando a cena.

Um mês depois, ele estava exaurido. Um dia tomou coragem e falou tudo que ele sabia. Ele queria dar-lhe apenas algum dinheiro, mas ela queria o apartamento, e ela revelou ser a negociadora mais habilidosa e agressiva que ele já havia conhecido em toda a sua vida de executivo. Ela ameaçou inventar horrores sobre ele nas redes sociais e até na imprensa, e ainda arrematou: você sabe que a verdade é uma questão de ponto de vista, não é? 

Chegaram enfim a um acordo: ele depositou um bom valor em dinheiro na conta dela e transferiu para ela o carro, o seu carro, seu xodó, que custou uma fortuna. Ele tremia de raiva quando entregou o carro a ela, mas pensou: eu entrego os anéis para não perder os dedos. 

Ela entrou no carro e foi imediatamente ao shopping, visitar uma de suas lojas preferidas e comprou a sandália e a bolsa mais caras da loja. Sentia-se deslumbrada com a sandália cravejada de joias que acabara de comprar. Sentia que estava pisando nas nuvens, e foi para o apartamento do amante, que seria a partir desse dia, seu novo esposo.

Memórias e reflexões

Primeiro eu me revoltei

Eu via tanta coisa errada

Depois que vi que é uma furada

Eu não estava mudando nada

 

tudo o que eu podia ter sido 

e nunca fui

Eu não sabia pra onde ir

Comecei a aceitar, aos poucos

mas a impotência, um sufoco

 

E quanto mais relativizava

o niilismo se implantava

O vazio é pior que a dor

Às vezes se sobrevive 

um dia de cada vez

 

Demorou e aos poucos voltei 

a sentir tristeza – que seja

e diferente ressuscitei

já havia alguma leveza

 

O mundo é maior que eu

o amanhã virá numa bandeja

servido de presente

eu esteja ou não esteja

 

Então decidi, decisão total

Não serei herói, só uma vida normal 

E construí uma vida tão linda 

que não tinha imaginado ainda

 

Estudo, casamento, trabalho

inovação, movimento, vida ágil

e com o filho as brincadeiras fartas

 

Então o castelo de baralho

percebi que era frágil 

e assoprei algumas cartas

 

Construo novamente

algo um pouco diferente

Porque estar no mundo

é algo tão profundo

quero viver totalmente