Madrugada

Antiga cilada

de pesadelos incontroláveis

hoje a madrugada 

traz presentes inefáveis

indescritíveis imagens

 

O santuário da solidão plena

o momento da alma cheia

que alguma palavra entremeia

vaidosa, se achando poesia

 

Mas a poesia chega humildemente

como a lua discreta

que soletra o coração da gente

Ou como as estrelas

pelas telas do céu

pintando sem pincel

 

Poesia também brota do chão

da escuridão imputável

com medo de ficar revel

 

por isso fala bastante

faz um discurso excitante

Reescreve cada linha 

Realinha cada instante

Mergulhar

Não sei ficar boiando

Gosto de mergulhar

Não sei pegar leve

E mesmo que pese

me jogo no mundo

como um moribundo

 

E se eu morresse hoje?

Não fiz nada! Ojeriza

de mim mesma

Lerda que nem lesma

Dei tanto tempo a tudo

que não interessa

 

Só nadei com pressa

e sem rumo 

Agora afundo

mas no prumo

até que o oxigênio deixe

Ou uso equipamento de mergulho

Ou aprendo a respirar como peixe

Construí um império

Eu construí um império

Com muito sucesso

Resido num paraíso

Tenho tudo em abundância

Satisfação, orgulho e ganância

 

Minha construção é vazia

meu trabalho é sem sentido

Ganho bem pra prejudicar 

quem não é meu amigo

e nem inimigo

 

Eu sorrindo sabendo

que quem sorri pra mim 

está sofrendo

Todo mundo mantendo

aparências sem fim

 

Sucumbi ao peso 

do que construí

O que vou legar?

Algo pra carregar?

 

Chega, parei aqui.

Isso vai ter fim.

 

Vou mudar o império

Isso é sério

Porque de velho

basta eu pra ranzinzar

 

Quem inova se arrisca

a andar numa pista

que se avista no ar

Como a águia

Como águia

voo pro alto

o olhar agudo

vê de assalto

 

Como águia

busco a caça

levo pro ninho

amor e graça

 

Como águia

à meia idade

o ninho vazio

maturidade

 

Como a águia

sei cuidar e caçar

sei quando voar

e a hora de pousar

Roubaram meu celular

Roubaram meu celular. Roubaram meu celular! Levantei daquele banco por uns instantes. Como é rápido, tanta gente, impossível, perdi. Estou desnorteada, caminhando entre tanta gente em quem não confio. Acho que sempre fui meio desconectada. No fundo, eu queria perder o celular, eu queria me desconectar, descansar, desligar. Agora admito isso pra mim mesma. Caminhando e pensando, subi esse morro e vejo muitos fervilhando lá embaixo. Perdi o chão, desconexão, estou flutuando. Sinto medo, não sei se é de voar alto demais, ou de aterrissar. Não, nem um nem outro. É de nunca mais me conectar.

Recebi tanto

Do pai e da mãe a vida

De pessoas queridas

atenção e olhar 

Dos cuidadores

condições de crescer

De professores

aprendi a estudar

De mercadores

tantas coisas para comprar

Dos mais velhos

alguma rabugice

e muita sabedoria

Das pessoas más

injustiças e crueldades

e, logo, oportunidades

de gerar mais paz

Do país

um chão pra pisar

e escola pra estudar

Recebi tanto sempre

que me envergonho 

de ficar descontente

ou indolente

Eu quero compensar

O peso da guerra e o preço da paz

Dois jovens viajavam lado a lado. No meio da viagem, conversando, descobriram que pensavam de maneira diametralmente oposta sobre o mundo Chegando ao final da viagem, se despediram, mas decidiram manter o contato e ver qual dos dois chegaria melhor ao final da vida e, assim, aquele que estivesse melhor demonstraria através dos próprios fatos que estava com a razão. Um terceiro, que ouvia a conversa e achou a ideia muito boa, se dispôs a avaliar no final.

Um deles amava a paz e evitava todo conflito. Ao perceber dissonâncias num ambiente, cuidava ao máximo para não se envolver em nada. Quando tinha oportunidade, tentava atuar de maneira conciliatória, mas muitas vezes suas opiniões nem eram ouvidas.

O outro não suportava algumas coisas que considerava muito erradas. Ao contrário do primeiro, se posicionava e se envolvia fortemente em muitas questões. Apesar de seus esforços para efetivamente apresentar soluções, muitas vezes suas opiniões, igualmente,  não eram ouvidas.

O primeiro desistiu de falar e silenciou. O segundo desistiu de falar e lutou.

No final da vida, os três se reuniram. O primeiro disse: 

– Me sinto triste e sozinho, passei a me sentir indiferente e não criei nada de importante, mas estou leve e tranquilo. 

O segundo disse: 

– Passei por cima de algumas pessoas no caminho, foi pesado e estou todo esfolado, mas consegui várias coisas pelas quais lutei, tenho vários amigos, isso tudo me dá satisfação. 

O terceiro disse: 

– Bem, então o vencedor fui eu. 

– Como assim? Disseram os outros dois.

– É que com o tempo eu consegui ouvir e entender a todos. E entendi que, de alguma maneira, cada um tinha um pouco de razão, mas na maioria das vezes, eu não conseguia fazer com que cada um entendesse o outro.

Os dois primeiros perguntaram: 

– Mas você silenciou ou lutou? E se lutou, de que lado? 

– Eu silenciei às vezes, outras vezes falei. Quando ficou pesado demais, humildemente larguei. Quando o motivo me parecia justo, corajosamente lutei. Acabei até mudando de lado, sem nunca ter certeza do que era melhor. No fundo, o que eu fiz não fez muita diferença. 

– Se não fez diferença, você também não deveria ser o vencedor.

Por fim, os três concluíram que a guerra tem peso e a paz tem um preço. E que a primeira ação deve ser a boa disposição para a comunicação.

No fundo da violência

Eu me descontrolo, enfureço, perco o controle sobre mim

Não me conheço, humano ou monstro?

Amo tanto a todos, mas quando me perco, o monstro… 

Não quero fazer mal, mas não basta o querer 

tenho medo do que possa acontecer

 

Eu não sou malvado 

Donde vem esse castigo?

Eu sei que é bem antigo 

pudesse voltar para o passado 

consertar o quebrado 

reviver quem foi morto 

reescrever o destino torto

 

Espelho da minha vida 

vou curar essa ferida 

olhar toda a dor e desgosto 

Não é uma criança pequenina 

quem encara a força da vida

e sim o adulto poderoso

 

Eu vejo o sangue derramado 

lá no desconhecido passado 

ensandecendo meus neurônios 

Respiro no meu coração 

peço perdão 

sem esperar ser perdoado

só me revelo envergonhado

mas não posso mudar o passado

 

E agora entendo com clareza 

a raiva é a fraqueza 

de quem se sente miudinho

com uma dor maior que tudo

jogando sobre o mundo 

o que não pode carregar sozinho

 

Assim a violência chegou aqui 

mas não vai mais prosseguir

E a dor pode terminar 

porque eu posso renunciar 

E escolher viver e renovar

Vida é experiência infinita 

laboratório a céu aberto

 

Agora escolho

o amor eu professo

e me alegro pacificado

vibro com o sucesso 

não importa de que lado 

a todos acolho

de modo indiscriminado 

 

Cabe a vida inteira 

num dia consagrado

pelo peso de um fato 

que atravessa séculos 

quase intacto 

Até que é renovado 

em nova geometria do bem

antes impossível 

inimaginável 

É quando o ser

mais e mais amável 

na benevolência tem 

boa companhia

 

Estar inteiro na vida

é deixar ir o que foi um dia

e deixar vir o que não veio ainda