Cacto

O ambiente árido eu conheço

Espinhento, resistente 

Cresço, lento mas cresço

Rebroto a cada quebrada

Nem preciso deixar semente

 

Quem toca minhas mãos ásperas

se arrepende

Ninguém entende

Sinto muita lástima

Mas não posso fazer diferente.

 

Meu espinho fura

Minha seiva cicatriza

Minha folha é dura

Minha flor suaviza

Sou o paradoxo da vida

Sons

Posso tentar falar todas as línguas

Cantar em todas as notas

Gritar em todos os tons

Alto ou quase sem som

Tocar instrumento de cordas

sopro ou theremin

E algo fala em mim

que sou um imitador

Dos sons da natureza

perfeição e destreza

do agudo beija-flor

grito de quero-quero

ou da águia certeira 

alegre maritaca

vida abundante e de graça

a embalar canções sem fim

Tresloucado caos

Não posso evitar

Tresloucado caos 

surge abundante

gigante impensante

rápido a girar

toma corpo e expande

mas é um infante

Hahaha que ironia

comanda a noite e o dia

é poderoso e afoito

mas crec! como biscoito

Mesmo esfarelado 

que bagunçado! 

Gigante caos indomável

eu me rendo 

Mas fique aí

só de longe te contemplo

e permaneço amável

Medo

 Já tive medo de pesadelos 

aqueles horrendos à noite

inesperados, rápidos aterrorizantes 

como um açoite

Hoje, conheço o inferno e a guerra

e descobri que o monstro das minhas noites 

era eu

 

Já tive medo da vida 

de enfrentar o desconhecido

Hoje tomo qualquer destino 

como bem-vindo

 

Já tive medo da morte

do fim inesperado 

do azar sem sorte

Hoje amo os mortos e os vivos 

são todos meus amigos 

e daqui um tempo… pois é, isso mesmo

 

Já tive medo de doença

mas terminei a sentença 

de sofrimento do corpo

Hoje não temo nenhum pouco 

o destino, sabe, é tão grande

 

Já tive medo de existir sem sentido 

e sem consciência 

Hoje tenho consciência 

de que todos os sentidos 

simplesmente servem à plena existência

Semente a voar

Quando a semente emplumada 

do galho se desprende

deseja voar livremente 

até um solo fértil e 

viver plenamente

 

Se tiver sorte vai encontrar 

uma rajada do vento amigo 

que emoção e que perigo

sabe-se lá onde vai parar

 

Como uma criança com pirulito 

que crê voar quando veste 

a capa do herói favorito

tenta dominar o vento 

subir, voar atento

 

Então a semente cumpre 

a força do destino, natureza

desígnio de Deus – ou do outro 

sorte azar caos carma

 

E quando a semente se lança

só o sopro mudo do tempo

 

Sua única esperança

é enraizar ali no chão 

que puder alcançar

a terra adubada

ou a fresta da calçada

Cumprir

Por que eu viveria com esperança

se o tempo é finito

Por que exclusividades

se passarei por todas as idades

como qualquer mortal

Por que sonhar com um céu

e temer um mal

se tudo é normal

Por que evitar solidão

se cada um cumpre uma trajetória personalíssima

se cada um percebe isso ou não, aí é outra história…

Por que não brincar com o filho

se ele logo vai crescer

Por que não chorar

pelo que resiste em passar

Por que deixar de realizar

o simples do cotidiano

Por que não fazer

o incrível quase impossível

Por que não cumprir

uma simples vida?

Poesia simples

Um dia ouvi um poema simples

Rima bonita, sem erudição

Mas tocava o coração

Tanto a palavra 

quanto os olhos

De quem o declamava

Décadas vividas

com muita observação

Respeito as rugas obtidas

e a rudeza de sua mão

pois criou com leveza

e legou amor e beleza

para a próxima geração