A cabeleireira

– Deixa eu cortar o cabelo dela? Só as pontinhas!

– Nem pensar! – dizia minha amiga – ganhei essa boneca da minha madrinha.

– Ela vai gostar, vai ficar bonita!

– Claro que não, imagina! Ela vai chorar!

E eram assim as brincadeiras de boneca naquela época sem compromissos.

Não preciso falar dos cabelos das minhas bonecas, dos cortes inexperientes…

Hoje, ainda brinco disso. Tenho centenas de clientes e deixo todas lindas e contentes.

Você foi e eu fiquei

Estarrecido, paralisado

pela doença que te levou

Você foi e eu fiquei

mas parece que ainda estamos

lado a lado

Você foi mesmo?

não creio

 

E até hoje fico assim, meio

soterrado

parado 

estagnado

enterrado ao teu lado

 

Toco na raiz

da morte

que se nutre de húmus

E quando menos espero

algo me puxa para cima 

é um broto de vida 

que procura luz

Andar

Um homem decidiu caminhar

sem saber onde ia chegar

dias e dias e para não cansar

escolheu uma estrada plana para pisar

 

E pisava sempre no mesmo lugar 

dando voltas em círculos

para não se arriscar

 

Tanto pisou que a terra afundou e ficou difícil andar

Bem, tão difícil estava que ele saiu, enfim.

Mas por onde ir? Escolheu qualquer lado e seguiu

Encontrou pessoas, lugares

De uns gostou, outros, nem tanto

Caminhado conheceu amores, altares

igrejas, bares, riso e pranto

 

mas dali também saiu

porque logo perdeu o encanto

Ali na vila também andavam

girando em círculos pisados

 

e seguiu caminhando

e entrou num pântano

o que estou fazendo aqui?

Mas viu tanta planta, tanta vida

árvore, inseto, sapo e sagui

Viu belezas abundantes 

onde ninguém esteve antes

e depois de realmente curtir

decidiu seguir caminhando

 

A essa altura

já tinha vontade de chegar

em algum lugar

Afinal, pra que tanto andar?

Estranhamente ali perto 

havia um grande deserto

e ele começou a adentrar

 

E pensou: escolhi o rumo errado

mas não voltarei pro outro lado

Vou explorar essa areia

será que tem alguma sereia?

 

Mais uns passos e umas conchas no chão

e ao levantar o olhar 

deu de cara com o mar

aquela imensidão 

do céu até o chão

num azul de suspirar

A brisa refrescante da praia

talvez daqui eu nunca saia

esse é o meu lugar

 

Com o tempo, porém,

começou a cansar 

Que fazer? Que tal caminhar?

Seguiu uma estrada estreita

 

Do lado, o deserto

o mar ali perto

do outro lado o pântano

 

Sabia o que encontraria

em cada lugar que via

E pela primeira vez parou

Bem parado

Não tinha mais nenhum lado

a explorar

Parou de andar

Então voltou para a vila 

pra ter onde morar

e vieram lhe perguntar

onde esteve e como era lá?

E ele passou a explicar… 

Se eu apenas

Se eu apenas me sentar

Sem orar

Sem chorar

Sem pensar

Sem querer nem esquecer

Se eu apenas respirar 

espirrar

Pirar

Seu eu apenas viver

Sem remoer

Sem adoecer

Se eu apenas ser

Ou for

Ou sido

Parar

Ou fico ou sigo

Se eu apenas

Largar o abrigo

Se eu apenas abrigar 

um amigo

Se eu apenas respirar

e expirar

Inspiro

Maresia

Quando o gosto da maresia

me faz esquecer do corpo

Quando a leveza do céu

me levanta tal qual véu

balançando absorto

sob a brisa 

minha alma se alisa

e a paz abriga

Não busco mais de outro jeito

E assim minha saga finda

Assim que a vida fica bonita

Tudo está e assim fica

Poema doido

Posso ver e sentir tudo se abrir 

E eu vejo o espaço sideral

O dente e seu canal

A raiz do porvir

A árvore monumental

 

Posso sentir atrás da parede

A dormir toda a gente

Por aí

Eu saio a expandir

Sinto a dor e o êxtase

No muro eu acesso

 a verdade

o abscesso

o que infiltra e o que emerge

e o que submerge

Tal um iceberg imenso

quando vou, afundo

no contrassenso do mundo 

E eis o que move

no fundo

de perto

O resto é sonho, ilusão

só protesto vão

Família dormindo

No sofá marrom bombom

Dorme dorme um cachorrão

Eu vejo e canto em bom tom

bate alegre o coração

 

Na cama confortável

Descansa o menino

Brinquedo e ursinho amável

Velam o seu soninho

 

Na cama grande espalhados

Dormem o pai e a mãe da vida

Desencontros reencontrados

E se amam mais ainda

Te aceito

Não suporto te ver assim

Tão grande o amor que há em mim

Tão grande meu ideal feliz

que sempre me escapa por um triz

Quando eu te vejo assim

dói tanto em mim

Contigo vou ser infeliz

E quando enfim te sigo 

nesse duro destino

nesse desatino

a realidade se evapora

a alegria vai embora

E eu me atino 

Recomeço a buscar

num eterno círculo

Quando por fim te olho

com toda tua dor

força e amor

a dois metros de distância

sorrio sem ânsia

E percebo:

o que faço, eu imito

não é remédio, é placebo

Por fim então digo

Sim, sim te aceito

mesmo doendo

A realidade se impôs

E eu pequeno, me viro e conserto

meu erro

Mantenho meus olhos limpos

Sempre abertos, ou fechados, contemplo

E puxo a cadeira pra você sentar

Podemos conversar 

sorrindo

E quando você decidir partir

abrirei a porta para você sair

Recebi tanto

Tive uma família

escolas de graça

bons amigos

E talvez nenhum grande inimigo

Recebi muita saúde

vi o rural e o urbano

a pobreza e a riqueza

já visitei o poder

já vesti a invisível exclusão

Conheci a História do mundo

e todas as leis 

Aprendi a dividir e a acumular

Sobretudo, aprendi a me perguntar

De tanto lutar 

dominei a guerra 

e a paz eu se sei selar

Já trabalhei a terra, o papel, o teclado

amei o futuro, o presente o passado 

Perdi e reencontrei a mãe diversas vezes

Aprendi a simplesmente olhar o pai nos olhos

Ganhei uma segunda, uma terceira família

aprendi sobre harmonia

Cuidei do cabelo rebelde

do cachorro, do gato

de mim, de nós, do bebê

Aprendi a parar de reclamar

Para quem está em paz com o lar

todo chão é bom pra morar

Para quem entendeu dez por cento

de sua mãe e seu sofrimento

toda cobrança acaba

Para quem deu um teto ao pai

dentro do coração

realidade é realização

Quem decide amar sem paixão

pacifica um furacão

e em vez de destruição

faz ninho no coração